Quantcast
Channel: Lendo Canção
Viewing all 280 articles
Browse latest View live

Maldito rádio

$
0
0
Diante da falta do pré conhecimento do ouvinte, o rádio age com a imprevisibilidade. Em geral, salvo quando o apresentador adianta, não sabemos qual canção será executada no momento seguinte. Outras técnicas de reprodução tentam repetir isso. Mas, por exemplo, o  modo aleatório de nossos equipamentos trabalha com canções previamente escolhidas por nós, faz a procura "aleatória" em arquivos pré montados. Tudo está previsto, tudo é des-surpresa. Ou seja, tais recursos inibem o risco e a graça que o rádio nos proporciona.
E é uma destas armadilhas do imprevisível radiofônico que captura o sujeito de "Maldito rádio", de Adriana Calcanhotto (Micróbio vivo 2012). Sem esperar, já em pretensa profícua recuperação das dores do termino do amor, o rádio toca a canção que detona memórias e esquecimentos. "Maldito rádio / Agora que parecia que eu ia / Deixar o falso amor lá na memória / Agora que parecia que eu ia ser agora", canta praguejando: "Volte pros anúncios / Para para o hit da nova novela".
Amamos a vida pela sua imprevisibilidade. É a vontade livre das coisas o que nos oferece a sensação de liberdade, mesmo quando elas nos parecem fazer mal, como no caso do sujeito da canção. Ferido, ele não percebe isso: quer esquecer aquilo que o rádio teimou em lembrar. O excesso de segurança, vigília e (falso) bem-estar parecem caracterizar a contemporaneidade.
Uso o termo vontade tal e qual Nietzsche definia. Ou seja, como a unificação de toda a multiplicidade dos nossos afetos. Como o querer só se constitui como palavra, é o reconhecimento do domínio que dá a sensação de liberdade. Mas este domínio não pode ser confundido com comodismo, máscara, aparência, ilusão.
Na verdade, é neste imbróglio que o sujeito da canção está enredado. Ele acha que tem o domínio, mas a canção tocada naquele momento pelo rádio vem e desvela tudo. O sujeito pensa comandar os afetos, mas reconhece que não os obedece e culpa - porque ainda carregamos a necessidade de apontar culpados - o rádio por isso.
É a negação da vontade o que move o sujeito da canção "Maldito rádio". Iludido na crença de que teria o domínio-de-si - Agora que parecia que eu ia / Mudar de vez o curso dessa história (...) Não é momento / De revisar emoções que são só minhas" -, ele se defronta consigo mesmo, com situações que não se resolvem no nada, mas, ao contrário, na afirmação dos afetos que ele tenta negar.
De viés, ele descobre que não é independente de outros sujeitos, de outros corpos, muito menos do "falso amor" (ela), nem da história pulsional e cultural que lhe constitui hoje. A canção que lhe rouba a pseuda harmonia, convida o sujeito à vida, ao enfrentamento, ao risco. Ela Indica que ele não está apartado do todo.
Em sua valorização do esquecimento e de sua consequente força plástica fundamental à felicidade, o sujeito esqueceu que a vida é um lance de olhos, um relance, um instante. E é isso que a canção - com melodias que machucam o coração - quer apontar, surgida assim, do inesperado. Não à toa, "Maldito rádio" é dedicada a Ângela Maria, "como representante dessas vozes que amamos escutar no rádio, mas que às vezes podem machucar", como escreve Calcanhotto no encarte.
Podemos entrar ainda em uma rápida, mas pertinente, reflexão sobre o tempo. Como diz outra canção, "o tempo voa mais do que a canção". "Maldito rádio" confirma que o tempo da canção não é o tempo do sujeito. Com sua capacidade de cristalizar momentos, a canção parece estar no eterno presente. "Ficaram as canções e você não ficou", dirá outro sujeito cancional. Enquanto isso o sujeito não está apartado do todo temporal.
O tempo não é espacializável. E é do centro desta constatação dolorosa que surge o canto do sujeito de "Maldito rádio". Adultos, não somos como a criança que esquece no instante imediato a briga com o coleguinha e caímos na interpretação rancorosa do passar do tempo. É nisso que o sujeito se debate. Tudo motivado pela canção que desperta memórias não agradáveis, histórias "mal acabadas".
Voltando a Nietzsche, podemos dizer que o sujeito de "Maldito rádio" está na afirmação do "foi assim", ao invés do "assim eu quis", "assim eu vou querer". Esta mudança na mirada das coisas que somos ainda não atingiu o sujeito e ele sofre. É este "querer para trás" a cura do ressentimento proposta por Zaratustra.
Ou seja, esquecimento não é inércia, acomodação, resignação. É trabalho contínuo, é uma benção laica daquilo que somos e continuamos a experimentar ser. Esquecer é lembrar que somos um todo de afetos em que não há distinção entre corpo e alma, mas um continuar querendo o que foi/é querido, e não maldito.
"O esquecimento, em Nietzsche, remetido à digestão, sugere uma visão do corpo e da relação com a vida radicalmente distintas daquela estabelecida pela lógica da descartabilidade e da obsolescência imediata de tudo (tanto de produtos quanto de relações interpessoais), cara aos modos de vida atualmente valorizados, atrelados à lógica empresarial", destaca a doutora Maria Cristina Franco Ferraz, em palestra intitulada "Atualidade do pensamento de Nietzsche".
Obviamente, é preciso haver uma "paciência do tempo", um dobrar-se ao tempo do luto, da doença, do fim de uma relação amorosa, por exemplos. Mas é do horror contemporâneo ao risco que trato aqui. O sujeito de "Maldito rádio" mostra que a prevenção e a adaptação não deram conta daquilo que ele suponha ter "superado". Esquecer não é negar, isso ele descobre com o retorno da dor, ao ouvir aquela canção inesperada que, entre um hit da novela e um anúncio, lhe arrebata e arrebenta.

***

Maldito rádio
(Adriana Calcanhotto)

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não

Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Deixar o falso amor lá na memória
Agora que parecia que eu ia ser agora

Não é momento
De machucar meu coração com melodias
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pras notícias
Para o hit da nova novela

Maldito rádio

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não

Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Mudar de vez o curso dessa história
Agora que parecia que eu ia ser agora

Não é momento
De revisar emoções que são só minhas
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pros anúncios
Para para o hit da nova novela

Maldito rádio

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não

Peso e medida

$
0
0
"E há sempre uma canção / Para contar / Aquela velha história / De um desejo / Que todas as canções / Têm pra contar". Recupero este verso da canção "Fotografia" de Tom Jobim para guiar minha audição/leitura de "Peso e medida", de Alceu Maia e Zé Katimba.
As duas canções se aproximam tanto no registro pela simplicidade da naturalidade com que o amor se manifesta na vida de quem ama e é amado, quanto pela potência metacancional, ou seja, pela discussão - interna à canção - da canção ser a melhor tradução do sentimento.
Mas as duas canções se distanciam no tratamento do tema: enquanto aquela foca na visão (fotografia), "Peso e medida" se abastece da sinestesia, da possessão de todos os sentidos do sujeito que canta. E isso intensifica o contraponto entre a batida Bossa Nova (plástica, solar) e a pegada do Samba (sinestésica, trágica).
Os versos "O nosso amor é coisa tão bonita / Canto de sereia em alto mar / Uma canção que faz a gente se entregar" servem de argumento à simplicidade (no dizer) e ao caráter metacancional. Sendo uma canção da canção que o amor é, "Peso e medida" se autocanta figurativizando na letra e na melodia as filigranas que lhe constitui.
Aliada a isso há a voz de Ana Costa (Hoje é o melhor lugar, 2012) conferindo à canção nuances vocais que sublinham a intenção do sujeito. Sutil, equilibrando tons baixos e flashes de serenidade (não socrática, mas física, de êxtase) por aquilo que canta, Ana Costa imprime um sujeito tomado pelo amor: bonito de ver, de se entregar, brisa, calor, fome, comida. Ilustrando a frase de Guimarães Rosa: "O amor é sede depois de se ter bem bebido" (Noites do sertão: Corpo de Baile).
É dessa sede depois de saciada que o sujeito de "Peso e medida" fala. E Ana Costa consegue captar tamanho estado-de-espírito - nem alegre nem triste - na performance vocal. Há uma sensação de desimpedimento ("Jeito de perdão") no gesto da voz da cantora. A canção torna-se ornamento.
Sem saber, compromissado apenas com o canto do amor, com suas vivências íntimas, o sujeito universaliza ("que faz a gente se entregar") as experiências possíveis a todo amante. Porque canção, o amor é abrigo depois de muita procura. É deste lugar que o sujeito de "Peso e medida" canta. E Ana Costa performatiza isso ao dizer na voz que a canção (o amor) se presta à vida.
"Canto de sereia" e "beco sem saída", o amor cantado por Ana Costa é o rendado desejado e por fim alcançado. O sujeito de "Peso e medida" se coincide com o ouvinte (humano), ao cantar suas fragilidades e fazer delas sua fortaleza, sem receio: prazer total. Ele quer viver seu necessário destino de amador e faz isso com afirmação.
O sujeito parecer saber para onde o (nosso) amor - "canto de sereia" - pode leva-lo e mesmo assim, e talvez por ser assim, pela imprevisibilidade, sem egoísmo, ele se entrega cúmplice das sereias, já que também é um cantor: do amor. De um amor físico, alimento do corpo, que se sente no estômago e na boca - fome e comida - e na pele - brisa e calor. A pretensa unidade interna (do sujeito) se dissolve na inconsistência do mundo externo.
"Felicidade em forma de canção", o (nosso) amor cantado pelo sujeito de "Peso e medida" é o mais real dos sonhos, como Ana Costa canta em outra faixa do disco. Há fidelidade entre os olhos dos amantes sensíveis. Canção (ficção) e verdade aqui são a mesma coisa. Não a verdade, mas uma verdade, dos amantes.
Parafraseando a tão incompreendida observação de Schiller, podemos intuir que "séria é a vida, alegre e serena é a arte (e o amor)". A canção (a arte) dá forma - é o peso e a medida - ao absurdo amoroso vivido pelo amador e, deste modo, torna-se a verdade - peso e medida - pronunciada.
Importa não confundir isso com mascaramentos frívolos, muito embora o indivíduo precise deles (de um chão) para suportar a crise de viver. Palavra, melodia e voz, a canção (o amor) é sempre um convite ao canto da sereia (verdades): à uma jovialidade permanente do eterno (estar) presente - ser todo em cada coisa, hoje é o melhor lugar. Do modo como Ana Costa demonstra ser quando canta.

***

Peso e medida
(Alceu Maia / Zé Katimba)

O nosso amor é coisa tão bonita
Canto de sereia em alto mar
Uma canção que faz a gente se entregar
Luzes que se espalham pelo ar
É brisa leve, é calor que espanta o frio
É sonhar

É peso e medida
Beco sem saída
É fome é comida
Jeito de perdão
É cumplicidade
A nossa verdade
É felicidade em forma de canção

Força estranha

$
0
0

Narrar é potencializar a memória, evocar o passado, ressignificar a experiência temporal. Toda narrativa coloca o ouvinte no campo das verdades ficcionais, criando entre o narrador e o ouvinte um pacto inaudito, mas subentendido, de cumplicidade para que os efeitos poéticos daquilo que é narrado possam ser recebidos noutra noção de verdade: revelação feita pelo artista - "o tempo não para, no entanto ele nunca envelhece".
É porque resiste às forças do esquecimento que Ulisses consegue compor a sua Odisseia. Para narrar suas astúcias, o herói homérico precisa vencer Lotófagos, Circe e Sereias - elementos do perecimento de muitos de seus companheiros de viagem justamente porque embriagados nas seduções da perda-de-si.
Conforme Luís Inácio Oliveira (Do canto e do silêncio das sereias) anota: "A atividade de narrar desenrola-se com base em uma dialética da memória e do esquecimento, na qual o lembrar conjuga-se ao esquecer, o re-presentar contém o deixar algo ausente, o registrar inclui o suprimir, a retomada pela recordação implica a seleção e o abandono de algo, a de-cisão e a perda" (pág. 49).
Diferente de Aquiles, que não narra as próprias experiências, pelo contrário, a personagem principal da Ilíada passa mais da metade do livro fora de cena, Ulisses é o cantor-de-si. Como sabemos, Aquiles cumpre o destino de morrer jovem, no ápice de seu vigor heróico e é imortalizado no canto glorioso dos aedos (cantores). Já Ulisses entra para a história por aquilo que "ele mesmo" narra quando se senta à mesa dos feácios, ao lado do aedo Demódoco.
Bem diferente do Ulisses que aparece no Canto XXVI, do Inferno de A divina comédia: apagado, silenciado pela morte no mar (do esquecimento), sem o louvor do aedo. Canta Dante: "(...) assim surdiu diante de meus olhos multidão de luzes congregadas. Cada uma, em seu interno, levava, oculta dos fulgores, a alma de um pecador". Unido a Diomedes no castigo, Ulisses purga "a traição do cavalo (de Troia)"; "o ardil que levou a morta Deidamia a chamar por Aquiles"; e "o roubo do sacro Paládio".
Mais adiante Ulisses conta a morte inglória: "Quando fugi dos feiticeiros encantos de Circe (...) nem a forte saudade do filho, nem a lembrança da provecta idade do pai, nem o puro amor de Penélope, a esposa fiel, venceram em mim o desejo de conhecer o vasto mundo, o aspecto dos demais mortais e a sua valia respectiva. (...) Cinco vezes o Sol que ilumina deixou acender a Lua (...) quando, para nosso espanto, se mostrou envolta em brumas, montanha tão grandiosa. (...) eis que dessa terra nova contra nós investia um furacão. (...) E sobre nós fechou-se o mar".
Ora, sepultado no mar, uma das maiores desgraças para um herói épico, Ulisses não teve tempo de (se) cantar. Perdeu-se sem qualquer lembrança alheia. Além da criação do poeta. E, de viés, Dante aponta a verdade ficcional e as palavras poéticas do texto de Homero, em que Ulisses vence todas as intempéries, tem o que cantar e se converte em narrador.
Salvador Dalí, nas ilustrações que criou para A divina comédia, retrata a falta de alteridade e de diferenciação vivida pelas almas do Inferno na aquarela do Canto XXVI, em que fragmentos de corpos se esboroam em massa compacta e pesada:
Ou seja, se na OdisseiaUlisses é o herói cujo passado humano é glorioso, em A divina comédia Ulisses é mais um a vagar pelo Inferno, sem distinção, oculto. Para Oliveira: "Se, na Ilíada, o mundo humano é descrito com base na guerra de entre troianos e aqueus, na Odisseia, trata-se de narrar as aventuras de Ulisses pelas fronteiras desse mundo, o demorado retorno a essa pátria, a sua difícil reconquista pelo herói errante" (pág. 54). E calcada na tradição oral, a palavra do poeta está associada à memória. Daí as formas fixas dos cantos que tanto ajudam na memorização.
Memória e esquecimento se complementam na fala do poeta. Basta lembrar que Mnemosyne, a deusa que faz recordar, também faz as dores e males do presente serem esquecidos. "A palavra do poeta é como o canto das sereias", anota Marcel Detienne (pág. 40), em Os mestres da verdade na Grécia arcaica.
Ao re-criar ao ações do "passado" interferindo no presente, o narrador engenha astuciosamente um mais-que-presente, uma verdade ficcional, concilia narrativa e ouvinte. "A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou", canta o sujeito de "Força estranha".
Tal e qual o Ulisses-aedo, o sujeito da canção "Força estranha", de Caetano Veloso (MTV Ao Vivo Caetano Zii & Zie, 2011), canta suas experiências. "Sem levar em conta a noção moderna de experimentação e de experimento das ciências empíricas nascidas no século XVII, esse termo - "experiência" - designa, não apenas, de modo geral, uma forma de conhecimento sensível adquirido ao longo do tempo, mas abarca sentidos tão diversos como sapiência e sabedoria, prática e perícia exame e prova, ensaio e tentativa" (OLIVEIRA, pág. 47).
"Força estranha" mescla certezas e metáforas de certezas. As estrofes da letra começam com o "Eu vi" abrindo espaço para o canto de experiências plenamente compartilhadas pela mídia e pela fala do cancionista ao logo de seus 70 anos, completos em 2012. O sujeito evoca o passado para argumentar e glorificar seu presente estado de cantor: "Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar / Por isso é que eu canto, não posso parar / Por isso essa voz tamanha".
O que é história e o que é ficção não importa, enquanto categorias estanques, ao canto do sujeito de "Força estranha", mas sim o engenho de ressignificar o passado glorificando o presente. Narrar-se e não poder parar de narrar, para lembrar e para esquecer, para permanecer vivo ao cantar aquilo que viu. "Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei", diz.
O sujeito de "Força estranha", diferente do Ulisses homérico e do narrador do Proust de Em busca do tempo perdido, que aparecem mergulhados na vivência das sensações daquilo que contam, foca o canto naquilo que viu, como alguém que experimentou a tudo pela visão, com poucas referências aos signos dos outros sentidos (como no já citado por "os meus pés no riacho"), e que agora precisa cantar, imortalizar o visto, o vivido. "Ainda canto o ido o tido o dito / O dado o consumido / O consumado / Ato / Do amor morto motor da saudade", canta Caetano noutra canção de sua autoria: "Acrilírico".
Presente "no fundo de cada vontade encoberta", o sujeito de "Força estranha" mimetiza o tempo que a tudo acompanha e comunga. Ele narra a passagem do tempo sobre cada entidade cantada: o menino, a mulher, o artista, os muitos homens. E, aedo ("Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são"), a tudo se conecta para poder cantar as experiências. Cantor-de-si e do coletivo épicos.
Metacanção dobrando-se para dentro de si mesma, "Força estranha" expõe os motores de sua potência: o lembrar e o esquecer - os arranjos narrativos daquilo que o sujeito viu e viveu. "Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei", canta. Convertido em narrador, Caetano Veloso baixa os tons vocais, contempla em retrospectiva, cumpre a promessa interna de não-esquecer o que viu, dá continuidade à tradição da passagem do tempo, pela memória narrativa que transmite os acontecimentos de geração a geração, sobre o coro do público que acompanha a canção ao vivo.
A memória do sujeito narrador de "Força estranha", sem a ordem cronológica, consagra eventos múltiplos e diversos, que, "como transcorre nas sagas épicas, são recompostos, reunidos e reconfigurados numa vasta unidade narrativa" (OLIVEIRA, pág. 103). A "organização" dessa unidade está mais próxima dos afetos - do tempo que "parou pra eu olhar para aquela barriga" - do que da sucessão dos fatos, mais perto da invenção poética - e por isso "real" ("O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei") - do que da historiografia dos relógios. Afinal, "a coisa mais certa de todas as coisas / não vale um caminho sob o sol".
Os versos de "Mansidão", de Caetano Veloso - "Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim / Violão deita em minha mão, acordar algumas notas / Colocar com exatidão na sombra o clarão sem fim" -, dizem muito da unidade ("colocar com exatidão") cantada pelo sujeito de "Força estranha". Um sujeito-narrador afetado pelo passado que engendra o canto, a canção: "Por isso essa voz tamanha".

***

Força estranha
(Caetano Veloso)

Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino,
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar,
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não pára, no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são
É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta,
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
É o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol
Por isso uma força me leva a cantar,
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Canção que não morre no ar

$
0
0

"Por ser feliz, por sofrer, por esperar eu canto / Por ser feliz, pra sofrer, para esperar eu canto", vocaliza Gal Costa. Os versos de "Minha voz, minha vida", de Caetano Veloso, figurativizam o caráter trágico e sublime do cantante, cuja "vida [que] não é menos [minha] dele que da canção". Sustentado no canto, ele se assemelha à cigarra que, finda a missão, cai para a morte.
Cantar e viver são sinônimos. É da natureza do cantor trazer a vida na voz. E não apenas a própria vida, mas, de viés, a vida do ouvinte mimado e narrado (encantado: música e magia) no canto alheio. No cantar da cigarra e do cantor, médiuns da vida, ou melhor, a própria vida, da felicidade que tudo sofre e espera, há o estar no mundo. Eles não cantam porque preferem, mas porque são "obrigados" a isso.
O cantar surge como uma espécie de gratidão natural, espontânea e ontológica à oportunidade de viver, de ser presença. A diferença entre o cantor-poeta e a cigarra é que enquanto o primeiro consegue se pensar fora do canto, a cigarra simplesmente é toda-canto. A cigarra não filosofa, inspira filosofia. Porém, é por saber - conscientes ou não - finitos que eles cantam.
O cantor-poeta-filósofo pode pensar "se deus existe" e sobre o seu "caminho inevitável para a morte". "A cigarra... ouvi: / Nada revela em seu canto / Que ela vai morrer", como Bashô escreveu em um de seus belos haicais. O canto dela é pura potência sublime do ser na vida, glorificação do estar no mundo, manifestação da natureza sem a mediação da razão. "Casca oca / a cigarra / cantou-se toda", anota Bashô, em outro haicai.
Por mais que algumas pessoas imponham sentido (semântica) ao canto da cigarra e de outros seres canoros, há aí sempre um canto "doação da natureza", sem um Eu passível de diferenciação. O pensar-se e a força imediata distinguem o humano, no primeiro, e a cigarra, no segundo.
Feito cigarra no ato de cantar, o cantor-poeta-filósofo-cigarra investiga e engenha a vida, deixa a vida ser sentida na voz que o distingue dos outros, seus "irmãos na terra". Incorporado daquilo que alimenta a cigarra, o cantor descobre o profundo desperdício de seu gesto: cantar.
Não há "razão" para cantar, tudo é erotismo e os signos que organizam o real entram em estado de suspensão, de crise: retorno da correlação música e magia. Aliás, o excesso de raciocínio, empurrando o mito para a morte, não respondeu às angustias humanas, pelo contrário, nega a interrogação e a afirmação motoras do movimento do indivíduo no mundo.
Daí também que cada ouvinte recebe de um modo próprio o canto que se quer coletivo."Eu vou ficar aqui / até acabar a festa / (...) / podem insistir / mesmo que amanheça o dia / não tenho para onde ir / (...) / por isto toquem a música bem alto / façam o tempo passar / (façam o tempo parar)", canta Elza Soares em pedido à "coisa acesa" que sai da (e é a) voz de alguém cantando.
Móvel e guardada (gravada) nos diversos suportes de mediação, a voz do cantor se infiltra e contamina outros cantores, pois permite a estes o contato atemporal com aqueles. Cigarras que se incorporam em novas outras cigarras. Afinal, se morrem para dar vida à vida (ao cantar), esta não morre nunca.
Os suportes técnicos permitem o registro e a troca de experiências. Aqui, claramente me afasto da defesa sobre o fim da faculdade de narrar defendida por Walter Benjamin. Mesmo entendendo os motivos e os argumentos da teoria benjaminiana, reconheço nas técnicas de reprodução o meio de permanência do mito, da capacidade de linkar mundos no mundo, justamente pela possibilidade de acesso.
Outrossim, sei que meu objeto de investigação é diferente do objeto estudado por Benjamin, bem como o contexto sócio-histórico do espetáculo inenarrável dos eventos da Guerra, não mais mítica ou épica. Mesmo assim, e talvez exatamente por isso, identifico na canção popular brasileira o estofo de uma gente que cantando, geme e ri "por ser feliz, por sofrer, por esperar". O traumático aqui gera vocalizes, toadas, aboios, canção. Estou certo, também, que esta minha generalização requer melhor análise.
"O mutismo traumático que acometeu os sobreviventes da guerra de 1914 constitui, segundo Benjamin, o funesto sintoma da destruição da experiência comunicável na modernidade (...). A narração tradicional corresponde, precisamente, à modalidade de discurso na qual se atualizam incessantemente a dimensão transmissível e o caráter de anamnese da linguagem, a forma de comunicação privilegiada pela qual a experiência, em seu sentido reconhecível e em sua dimensão histórica, pode alcançar uma expressão discursiva", anota Luís Inácio Oliveira (Do canto e do silêncio das sereias, p. 234).
De todo modo, creio que há na era da reprodução e mobilidade técnicas, quando tudo é transmutado em produto e requer um valor em dinheiro, a condição urgente, disponível e precisa da transmissão da experiência. Exemplo disso são as regravações, os "diálogos" entre cancionistas que, sem os instrumentos modernos, não seriam possíveis. Continuaríamos a ler letras de canção "apenas" como poesia. Como fazemos com os textos cantados e emudecidos da Ilíada, da Odisseia, entre tantos outros.
Egresso da banda Sheik Tosado e sua mistura de maracatu, frevo e hardcore, China faz de seu disco solo Simulacro (2007) um espaço para tons baixos e letras autorais. Entre guitarras e programações eletrônicas. O elogio canibal à tradição da canção popular, passando por Bossa Nova e Iê Iê Iê, psicodelia e samba, é o ponto forte de equilíbrio do disco.
Neste sentido, destaca-se entre as canções "Canção que não morre no ar", de China, posto que recupera, já no título, a "Canção que morre no ar" de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. E é a gravação que Gal Costa deu à canção em 1974 no disco Cantar que será refletida, ecoada, no comentário paródico-crítico de China.
Voz da Tropicália, Gal Costa é emulada na atualização do tema. Porque gravado, seu canto não morreu no ar. China sintoniza o rádio, acha a estação e se permite acelerar o coração. O resultado disso é a (nova) canção: "Sintonize o seu rádio / procure em alguma estação / se eu entrar nos seus ouvidos / acelero seu coração". Moderno, sentencia: "Minha voz vai se espalhar no ar / cada verso que eu cantar / os falantes te lembrarão / minha voz é canção que não morre no ar". Para finalmente atestar "Nunca mais vou te deixar / pois agora sou uma canção".
É quando é canção, quando retorna ao mito, que o indivíduo se eterniza. China trai o verso cantado por Gal Costa - a "Canção que morre no ar" vira a "Canção que não morre no ar" - para renovar a tradição do desejo de cantar. A experiência "autêntica" é um simulacro que, por sua vez, nas palavras de China - na letra de "Pastiche" - é "a aparência, é a imitação, é a reprodução imperfeita, visão sem realidade (...). É plágio e ágil, minha criança, é o retocando e o irretocável. Tudo convergido numa coisa só".
A experiência natural e autêntica, fundada na memória, reivindicada por Benjamin, encontrou novos meios de se realizar. A memória involuntária - que prescinde da vontade lúcida do indivíduo - e a memória voluntária - regida pela inteligência e pela vida prática - se mesclam. Inserido na cultura, o sujeito criado por China é exemplo de quem experimenta e vivencia o passado no presente.
Algo incompatível para Benjamin. Posto que para ele "o elemento aurático encontra-se no cerne da narrativa tradicional, já que o lastro da sabedoria do narrador repousa na durabilidade do transmitido, na autoridade da tradição, na memória da experiência coletiva, na sacralidade do passado épico, na aura do longínquo" (idem, p. 245).
Até a linha melódica muda: ao invés do arranjo grandiloquente que quer figurativizar a morte do resto de canção, uma balada (quase) dançante a embalar a certeza da canção que não morre no ar; ao invés da voz límpida de Gal Costa, a voz de China em sobreposições, criando um efeito de "sujeira", contaminação, interferência sonora.
Importa destacar que o mesmo mote foi re-atualizado por China na canção "Mais um sucesso pra ninguém" (2011): "E eu que fiz tantas canções para você / Não esperava que fosse desistir de mim / A cada verso, me entrega mais para você / Que nunca quis ligar o rádio para me ouvir // Mais um sucesso pra ninguém / Canção que vai morrer no ar". Aqui, desiludido no amor, o sujeito compactua com o sujeito de "Canção que morre no ar". Retorno do mesmo, em diferença.
Seja como for, cigarra-sereia que engendra cigarras-sereias, Gal Costa cantora é canção captada no futuro do presente de China. Este, por sua vez, em um gesto involuntário típico do indivíduo híbrido, cujo lastro da tradição é, na base, desmantelado, aconselha-se, dessacraliza, cita e monta uma Gal. Ambos, irmãos e cúmplices no trabalho de suster a vida na voz, no cantar, na canção.

***

 Canção que não morre no ar
(China)

Sintonize o seu rádio
procure em alguma estação
se eu entrar nos seus ouvidos
acelero seu coração

Mas não esqueça de mim
agora eu corro com o vento
você não pode me ver
me guarde no pensamento

Minha voz vai se espalhar no ar
cada verso que eu cantar
os falantes te lembrarão
minha voz é canção que não morre no ar

Nunca mais vou te deixar
pois agora sou uma canção

Blues

$
0
0

"Sócrates, Platão e Aristóteles construíram as bases do pensamento ocidental ou, se você preferir, os alicerces do racionalismo. Entretanto, no interior do Nordeste, consumíamos uma prosódia, um saber oral, uma visão de mundo que não advinha dos gregos, e sim dos árabes. (...) O importante é que a meninada do Nordeste bebia daquele caldo não aristotélico até entrar na escola. Por isso, costumo dizer que a creche tropical acolhia uma porção de analfabeto, os analfabetos em Aristóteles. Com 7 ou 8 anos, a garotada enveredava pelo colégio e, só então, tomava conhecimento da cultura ocidental. Calcule a surpresa, o fascínio. Descobrir os livros, as ciências e todo um palavreado diferente! Hipnotizadas por tamanho tesouro, as crianças jogavam fora o aprendizado anterior e deixavam que Aristóteles assumisse as rédeas em definitivo. (...) Nada desaparece, bicho! Nada! (...) Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico! Na década de 1960, Caetano e Gil (...) perceberam que tinham de resgatar o aprendizado do interior, a herança dos árabes, a tradição oral e uni-los à cultura pop do ocidente, filha direta do pensamento aristotélico. Conseguiram, assim, engendrar um ser inteiramente original, a dona Tropicália". Tom Zé (Revista Bravo! 179, jul/2012).
"A civilização ocidental foi mesmo uma obra-prima da Humanidade, mas demonstra cansaço. (...) Devemos ser dignos de seus melhores ensinamentos. Não podemos ser otários para insistir em seus impasses. (...) Quero o bom, misturar o melhor de todos os lugares. (...) Virar país desenvolvido não é chegar ao lugar onde o Ocidente está (...). Houve e há aqui, por exemplo, o encontro entre duas tecnologias do êxtase: o xamanismo indígena e a possessão africana. A convivência íntima entre essas visões de mundo incompatíveis pode nos dar um jogo de cintura metafísico (e criativo) realmente espantoso. (...) podemos copiar Gil. Ele disse: 'Para mim, raiz só de mandioca'." Hermano Vianna (Jornal O Globo - 27/07/2012).
Os contatos culturais nos países latino-americanos não foram pré-programados, posto que esses países se forjaram no meio do redemoinho da mistura, tendo o lastro ocidental colonizador empunhado, pela razão que a tudo quer dominar, as armas cerceadoras. Palimpsestos, enquanto rascunhos de ocidentais nós quisermos aplicar os saberes não-ocidentais às regras capitalistas, eles não encontrarão solo fértil para brotar, simplesmente porque são sementes de outros e para outros tipos de solo.
Os textos de Tom Zé e de Hermano Vianna se complementam na certeza cada vez mais pungente de que ouvir o Brasil apenas com os ouvidos ocidentais não dá conta de ensaiar aquilo que o Brasil é, ou pode vir a ser. O modo forçado e pretensamente lógico, porque racional, com que temos feito o Brasil caber dentro dos encaixes de certas teorias dá sinais de desgaste e cansaço. Sempre deu, mas também sempre foi mais cômodo pensar o Brasil assim, por estes vieses claros, lineares.
Ora, se em sua liberdade diante das dívidas morais "a creche tropical" se difere ontologicamente das outras, como querer entender o Brasil - "devorador universal" - sob os mesmos paradigmas? Onde colocar "os pés da Índia e a mão da África" do Brasil construído e adotado?
O verso da canção "Blues", de Péricles Cavalcanti (Blues 55, 2004), desperta a atenção para outras "novas" incorporações da brasilidade. Ou seja, se sincretizados, os santos católicos que aqui chegaram e dominaram o imaginário não são mais os mesmos de quando da chegada, há também nas traduções brasileiras de Krishna e Iemanjá uma devoração que distingue e transforma os mitos.
Nem Iemanjá é mais (apenas) o rio geográfico africano, nem Krishna é mais (apenas) um ente hindu. Do culto hidrolátrico Iemanjá passa a ser grande mãe africana do Brasil: é ela o rio que passa sem que possamos domar. Da posição de lótus, Krishna passa a ser referência de meditação: é ele a concentração dentro da estrela azulada.
Há uma intimidade tropical, solar, corporal e vocal interligando as várias pontas da estrela. Ou seja, no Brasil "o lixo dotado de lógica própria" significa-se a todo instante, para além da compreensão imediata, fixa, fechada. Ou seja, se o conceito ocidental de revolução está em crise, geneticamente o Brasil é sendo crísico - "Os pés no céu e a mão no mar".
Penso nestas questões enquanto ouço Péricles Cavalcanti, um cancionista burilador de canções, cantando "Blues", como um mantra, um ponto para orixá, uma devoção acústica ao gesto de fazer canção no Brasil: menos superações, acomodações e mais incorporações, fissuras. Por aqui, o que se devora está se conservando.
No Brasil, a pele azul-escura-celeste de Krishna se "harmoniza" aos tons de azul de Iemanjá: tão íntimos quanto dessemelhantes. Amalgamados no canto de Péricles, ele e ela - "Azul no sangue à flor da pele" - são forças transcendentais e instrumentos de mobilidade. Assim como blues é cor e gênero, pluralidade e ritmo, melancolia solar. Mistura que existe enquanto ficção e realidade, para além da razão puramente ocidental.

***

Blues
(Péricles Cavalcanti)

Tem muito azul em torno dele
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
Os pés de lótus de Krishna

Tem muito azul em torno dela
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
As mãos de rosa de Iemanjá

Os pés da Índia e a mão da África
Os pés no céu e a mão no mar

A dor e o poeta

$
0
0

O sujeito cancional é um complexo de categorias. Ele só se permite ouvir no instante-já da canção. Ele amalgama a voz do compositor, a voz do sujeito da canção (a voz que "fala" a mensagem da letra da canção) e a voz do desejo do ouvinte. E se descola de todos estes quando permite a fruição, bem como a possível significação, pessoal e intransferível da canção.
Noutra e complementar perspectiva, podemos dizer que o sujeito cancional reúne em si "as três vozes da poesia" identificadas por T. S. Eliot (ver De poesia e poetas), a saber: a do poeta (indivíduo) que fala consigo mesmo, a do poeta (sujeito) que fala como um outro e a da personagem criada pelo poeta (indivíduo e sujeito). Eliot reconhece que elas não se excluem, ao contrário.
Porém, a estas, no caso do sujeito cancional, temos ainda a presença decisiva da voz do desejo do ouvinte: o espaço entre aquilo que é cantado e aquilo é ouvido. O sujeito cancional, portanto, é um lugar. É neste lugar que as canções deixam de ser promessas e passam a ser canção, como aponta o sujeito de "Nossa canção", de José Miguel Wisnik e Mauro Aguiar. E é deste lugar lamacento e nada asséptico que o compositor canta, transmutado em cancionista: "As canções / só são canções / quando não são / mais nossas" (versos da canção citada).
É através do sujeito cancional que podemos dizer que, ao cantar uma "mesma" canção, diferentes intérpretes também são autores daquela canção, singularizando-a em suas gestualidades vocais; e que, ao tomar a canção para si, o ouvinte se apropria da mensagem para "entender" o mundo à sua volta e a si mesmo, imerso no mundo. É o sujeito cancional, coincidido com o estado do ouvinte naquele momento de execução da canção, quem faz o convite para o canto compartilhado. "De voz em voz / de par em par" (idem).
 No caso das canções de amor, ou quando há na letra da canção um destinatário aparente, por exemplos, é o sujeito cancional quem permite que uma canção dirigida a uma pessoa possa ser ouvida e apropriada, pela empatia, por outras pessoas, quando do momento de sua vocalização. Nela o ouvinte entra em intimidade com o que lhe é apresentado. O ouvinte não conhece o sujeito, mas tem nele um cúmplice.
Ou seja, o sujeito cancional é performatização sirênica. Ele apresenta em som (tensão entre corpo e alma) algo que até então o ouvinte e o próprio compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si - tão fluida e fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o drama do sujeito cancional.
Em sua vasta e rica pesquisa sobre os medievais, provençais Paul Zumthor aponta que é preciso se concentrar "nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares" (Performance, recepção, leitura p. 12) quando analisamos textos outrora oralizados e que nos são transmitidos como manuscritos. E reclama do silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as canções hoje tidas "apenas" como poesia.
Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos "abolem a presença de quem traz a voz" e que "os media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva". Salvo engano, o sujeito cancional como tenho aqui desenvolvido chama para si a responsabilidade de sustentar o mito, o arcaico vocal em tempos líquidos de reprodução técnica da voz.
Prismático, sujeito cancional é permanência (da certeza de que uma voz de alguém de carne e osso emitiu algo) e fluidez (momento luminoso feito um flash de compartilhamento de experiências). Corpórea e incorpórea, a canção é apreendida no corpo, que reage.
Pensando nestas vozes e em suas ações chegamos à canção "A dor e o poeta", de Moraes Moreira (A revolta dos ritmos, 2012). Nela, o sujeito da canção canta os motores que alimentam o poeta e a poesia. Retomando como mote o poema "Autopsicografia", de Fernando Pessoa, o sujeito diz: "A dor atinge / O peito do poeta / Mas ele finge / Que nada sente / e até se delicia". O foco aqui é na dor que o poeta "deveras sente". "É solidão / E ele dá outro nome: / Inspiração".
Há, no caso das canções, dos poemas vocalizados, entre a dor fingida (do campo da ficção) e a dor sentida (da inspiração), aliadas à dor vivida (no corpo) por quem ouve a canção, uma outra instância: o sujeito cancional, ligando tudo, entretendo a razão e tensionando as categorias no calor da voz que dura enquanto dura a canção.
De viés, "A dor e o poeta" chama atenção para o sadismo do ouvinte: "A dor destrói / Mas o poeta em si / É um herói / Diz que é feliz / E a plateia aplaude / E pede bis". O sujeito dessa canção parece chamar atenção para algo semelhante ao que experimenta o sujeito de "Bastidores", de Chico Buarque, na voz de Cauby Peixoto, que se constrói e se inventa diante dos ouvidos de quem lhe ouve cantar: "Cantei, cantei / Jamais cantei tão lindo assim / E os homens lá pedindo bis", apesar e além da dor.
A dor que atinge o peito do cantor se traduz em beleza trágica e satisfaz quem lhe ouve, satisfazendo a ele próprio por conseguir fingir (tornar arte/ficção) uma dor que deveras sente nesse "comboio de corda / que se chama coração", como anota Pessoa.
O texto de "A dor e o poeta" é cantado duas vezes: Na primeira a voz de Moreira declama os versos acompanhada de violões e sanfona, tal e qual acreditamos acontecia com a poesia medieval, provençal. Na segunda, no bis, com o poeta já devidamente deliciado na própria dor, Moreira canta: modaliza o texto na voz e na linha melódica dada pelos instrumentos. E vice-versa. E "o poeta faz / Um carnaval / Deixa doer / Até o fim / Ao bel prazer".
E a entrega no instante-já - "Em cada canção que vivo / motivo é que não me falta / Pra ir do começo ao fim", canta Moreira noutra canção do mesmo disco - se realiza. E o sujeito cancional surge e impregna de prazer a caixa acústica do ouvinte: "A dor é fria / Se não se transforma / Em poesia / Sofreguidão / Se não compõe os versos / De uma canção".

***

A dor e o poeta
(Moraes Moreira)

A dor atinge
O peito do poeta
Mas ele finge
Que nada sente
e até se delicia
Mas ele mente
A dor é tanta
No seu limiar
Mas ele canta
É de partir
O coração
Mas ele ri

A dor é fria
Se não se transforma
Em poesia
Sofreguidão
Se não compõe os versos
De uma canção
A dor invade
E o poeta diz
Que saudade
É solidão
E ele dá outro nome:
Inspiração

A dor é fina
O aço de um punhal
Não há morfina
Que traga alívio
Em sua permanência
Em seu convívio
A dor é tal
Mas o poeta faz
Um carnaval
Deixa doer
Até o fim
Ao bel prazer

A dor insana
Vai forjando as cenas
De um drama
E sobre o tema
Ergue a estrutura
Do seu poema

A dor destrói
Mas o poeta em si
É um herói
Diz que é feliz
E a plateia aplaude
E pede bis

Navegador de canções

$
0
0

O sujeito da canção é aquele que, em teoria da poesia, ainda chamamos de eu-lírico, uma categoria complexa que, em síntese, é a voz que fala de dentro do poema a "mensagem" do poema. É a voz insuspeita que diz "eu navegava canções", por exemplo, na canção de Tom Zé; ou "minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá", no poema de Gonçalves Dias. É o eu-lírico que fala o verso, distinguido, mas ligado por sutis relações autoficcionais, com o autor da obra.
Diverso, mas engendrado também ao sujeito da canção, o sujeito cancional é aquele que é quando a canção está em execução. É quando o ouvinte escuta Tom Zé cantando o verso acima citado que o sujeito cancional é localizado. Mas, principalmente, é quando o ouvinte coincide seu estado de espírito com aquilo que o sujeito da canção diz - está dizendo - que o sujeito cancional se apresenta em sua totalidade estética à apreciação.
O sujeito cancional brinca entre a carência e a saturação das experiências e vivências tanto do cancionista emissor vocal da canção, quanto do ouvinte. É o sujeito cancional quem, no indivíduo adulto, transforma a angustia em sono e sonho, como as canções de ninar maternas fizeram na infância.
Talismã contra a desventura, o sujeito cancional, claro está, é utópico e irrenunciável. Se embalar e cuidar de alguém exige tempos longos, maternais, no tempo contemporâneo veloz, o sujeito cancional toca exatamente na necessidade de laços de afeto. Coincididos, sujeito e indivíduo se embalam, sutilizam a dor, freiam o novo sempre igual do cotidiano sem futuro.
Voz mediatizada vinda do turbilhão moderno, o sujeito cancional breca os estímulos, fluxos e intensidades do mundo moderno porque "cuida" do indivíduo. Ou melhor, estimula o indivíduo ao cuidado de si, que é transformador, porque não recusa o passado, ao contrário, lembra ao indivíduo que este não está solto do saber viver do passado. O sujeito cancional não busca a inovação, nem entra no jogo da monotonia que se alimenta do novo, como nos alerta Walter Benjamin.
Do lugar da experiência estética, o sujeito cancional instiga a formação do ouvinte, posto que convida este à contemplação. Ele sabe que a pressa aniquila o conhecimento, mas faz dela uma aliada, quando pode ser posto à disposição do ouvinte nos fones de ouvido, em qualquer lugar. Ele faz da recepção distraída uma cúmplice no engenho de transmitir a sua experiência de sujeito estético, valorizando o presente do ouvinte.
O sujeito cancional reconhece a incompetência da realidade. É dela que ele se alimenta. Ele afronta o tédio ideológico das classes tidas como superiores e o cansaço de existir das classes desabonadas de bens de consumo. O sujeito cancional, quando engendrado no ouvinte, recupera o esmero do artesão. Ele faz com que uma mensagem dada ao coletivo possa ser digerida nietzscheanamente por cada indivíduo.
O sujeito cancional respeita a individualidade e imprime a originalidade de ser do ouvinte. Por isso cada audição de uma "mesma" canção é sempre uma repetição em diferença, pois vai depender do estado de espírito do ouvinte o exercício espiritual que o sujeito cancional promoverá.
O sujeito cancional criado por Tom Zé em "Navegador de canções" (Tropicália lixo lógico, 2012) não é o expert que, treinado, mas sem conhecimento, dá conselhos sem experiências. Ele é o intelectual que, carregado de traços mnemônicos, defende uma tese: “Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!” (Tom Zé, revista Bravo! 179, jul/2012).
O sujeito cancional é o narrador: ponte entre passado e presente, apontando o pensar do esquecimento das diferenças. Pensar no presente é sempre rememorar e mirar no futuro. Nem as trevas da ignorância, nem as luzes da verdade. Utópico, o sujeito cancional mostra que sem utopia estamos condenados à irrelevância.
Ao cantar os versos "Longe, sozinho, / Ventos marinhos, / Eu navegava canções", acompanhado por uma melodia montada essencialmente por instrumentos de cordas (violão, violino, cello, rabeca) cujo conjunto lembra os provençais, o mítico cantador nordestino, Tom Zé rejeita o desaparecimento do passado e convida o ouvinte a com ele navegar na trama melódica. Isso sem contar a recuperação da presença do coro - muitas vozes - em momentos pontuais da canção.
O sujeito da canção "Navegador de canções", narrando sua experiência, abre o leque das possibilidades sonoras e vocais que compõem a brasilidade, algo que Tom Zé reconhece disparado na Tropicália: ápice estético da valoração da mistura, do resgate das culturais orais.
Ao ritmo da gavota (dança francesa) e do fado, o sujeito da canção narra sua dança particular, porque coletiva-Brasil, entre os bordões (palavras e cordas de instrumentos) que alimentam as canções nossas de cada dia. O narrador-cancionista afirma que canta, que chegou "ao porto dos bordões, / onde botam ovos as canções" ao navegar, ao se permitir correr o risco de se deixar ser afetado por diversos extratos sonoros.
Condenado à civilização ocidental e à liberdade da utopia tropical, o sujeito da canção de Tom Zé ancora no ninho, no centro, no núcleo duro da questão: berçário dos analfatóteles (analfabetos em Aristóteles) "onde botam ovos as canções". Ele descobre na confiança na dança "das cardeais direções" o seu lugar de cancionista brasileiro não comportado: tropicalista. 

***

Navegador de canções
(Tom Zé)

Longe, sozinho,
Ventos marinhos,
Eu navegava canções,

Ia na dança,
Na confiança,
Das cardeais direções.
Eu navegava canções.

O fado ministrava meu noivado
Com duetos, minuetos,
Corais, corais.
Uma gavota me guiou
Ao porto dos bordões,
Onde botam ovos as canções.
Canções, canções.

Ô ô canção

Não tenho medo da morte

$
0
0


Quando perguntado sobre o que seria o tempo, Santo Agostinho respondia: "Se ninguém me perguntar, eu sei. Se eu quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei". O entrave entre o intuir e o traduzir em palavras levantado por Santo Agostinho nos sugere o quão difícil é definir o tempo de modo a dar conta de sua complexidade natural, psicológica, social. Temos um conhecimento intuitivo do tempo.
Como apontar aquilo que poderia ser o tempo diante da realidade objetiva (o passar sucessivo dos milésimos de segundos do relógio), a intuição individual da intervenção do tempo no humano que somos (e vice-versa) e os acontecimentos específicos do momento histórico em que vivemos? Portanto: A qual tempo me refiro quando quero falar sobre o tempo?
O certo é que nem todos os tempos (e aqui já aparece o plural do termo) são dignos de destaque. Voluntária ou involuntariamente, esquecemos e/ou recalcamos períodos, épocas. Se o passado, que é o único tempo que existe, ou sabemos existir, porque lá já estivemos, está perdido e o futuro deve ser (intuição de desejo) o que no passado era apenas uma promessa, resta-nos lembrar, viver e esperar no presente.
O presente, por sua vez, é um instante tão comprimido que quando acabo de digitar a palavra "presente" ele já se tornou passado. O tempo depende da memória individual e coletiva. E nós precisamos dessa memória para existir no tempo.
Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia antropofágica) Oswald de Andrade anota: "A ciência e a técnica procuram produzir na terra o céu longa e demasiadamente prometido pelo Messianismo" (p. 185). Na modernidade, com sua ousadia (coletivamente engendrada) de pensar a realização do futuro desejado não mais no campo da religião (pós) e sim da terra (aqui), mediante a valorização da técnica, tudo passou a contar e a ser valorizado em termos de produção, gerando a aflição da sensação de aceleração do tempo, a fim de que o investidor obtenha retorno rápido.
No conhecido texto "O narrador", a partir da experiência da guerra e do avanço da técnica, Walter Benjamin escreve sobre esta mudança de perspectiva em relação àquilo que importava e que deixa de importar: "Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano".
Benjamin aponta para as mudanças bruscas e repentinas nas referências do indivíduo e mira no capitalismo especulativo da nossa sociedade de consumo (em que poucos podem consumir). As novidades, nem sempre desejáveis, destroem as referências do passado, quando não feitas à vida criativa. O novo pelo novo e a necessidade de ter o "sempre novo" transformam a vida em uma interminável sucessão de meios cujas finalidades estão perdidas em si.
A aceleração que os meios promovem nos acontecimentos (fazemos cada vez mais coisas dentro de uma mesma fração de tempo), as tais técnicas de reprodução criticadas por Benjamin, porque extinguiriam a "aura" dos objetos feitos agora em série, implode a nossa capacidade de esperar e, consequentemente, de desejar. No texto "Experiência e pobreza", Benjamin anota: "Essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade". Daí as depressões, as melancolias, os fatalismos.
Sobre este ponto, Maria Rita Kehl escreveu em O cão e o tempo: "O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das crenças que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho investigativo e criativo que caracteriza seus precursores renascentistas, sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas ações. Daí a relação entre a melancolia (pré-freudiana) e o fatalismo, sentimento de insignificância do sujeito como agente de transformações, tanto na vida privada quanto na política” (p. 100).
As esperanças projetadas no futuro dizem muito do presente, já que aquele traduz as angústias deste. Assim como o presente é o panteão das angústias do passado. Deste modo, se "o futuro já começou", onde fica o presente? Suprimir quaisquer dos tempos causa pane no viver.
Baseadas nas leis constantes da natureza, as técnicas da física possibilitam prever o tempo, mas não a inconstância do humano no tempo. É no esquecimento da tradição que reside a desvalorização do futuro e do presente. Para Benjamin, o progresso promovido pelos meios não engendra, de fato, progresso algum, posto que não promove a emancipação do homem, nem o fim das desigualdades.
Voltando ao texto "O narrador", Benjamin escreve que "a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos".
Claro está que as perdas do tempo social analisado por Benjamin diferem radicalmente das perdas do tempo social brasileiro, basta olhar para a tradição (a relação com o passado) das duas sociologias. Daí também a perplexidade dos teóricos estrangeiros diante de nossa capacidade em transformar "lágrima em canção".
Penso em tudo isso quando ouço Gilberto Gil cantar "Não tenho medo da morte" (Banda larga cordel, 2008). Qual o outro narrador-cancionista para cantar as angústias e os prazeres diante do tempo que não para arrastando-nos ao nosso caminho inevitável à morte?
Em diálogo com o sujeito de outra canção de Gilberto Gil, o sujeito da canção "Não tenho medo da morte" observa que o futuro enquanto dimensão do tempo é sempre o mesmo: "mistérios sempre há de pintar por aí". Por um lado, o futuro é a diversidade de possibilidades, por outro lado, não há como fugir da morte: um presente do futuro - um estranho presente, pois, "a morte é depois de mim".
O medo que assombra o sujeito da canção é o medo de morrer antes de acabar o que lhe cabe viver. Morrer dentro da vida: da morte chegar demasiado cedo. Canta: "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui (...) Não tenho medo da morte / mas medo de morrer, sim / a morte e depois de mim / mas quem vai morrer sou eu / o derradeiro ato meu / e eu terei de estar presente".
Noutro trecho da letra, ouvimos: "A morte já é depois / já não haverá ninguém / como eu aqui agora / pensando sobre o além / já não haverá o além / o além já será então". O sujeito percebe que estamos invariavelmente presos ao presente, mas olhando sempre para o depois. "E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo / Tempo tempo tempo tempo / Não serei nem terás sido / Tempo tempo tempo tempo", canta Caetano Veloso, na sua "Oração ao tempo".
Objetivamente, o aqui e o agora não existem. Como entender o "Obrigada, senhores, obrigada por estarem aqui, hoje", que Maria Bethânia me diz através do disco, senão pela minha disposição ao pacto com o eterno presente das canções que, mesmo mediatizadas, conectam-se à minha memória: lembranças e esperanças. Para que o sujeito cancional surja o tempo de sua existência precisa coincidir com o tempo do ouvinte.
O tempo da "fala presente" do sujeito cancional é o futuro do pretérito: poderia ser, tinha tudo para ser, mas não será, mesmo estando preservado(?) da ação do tempo pela técnica. No ouvinte, no entanto, fica a intuição de que aquilo é e pode ser. Eis o tempo complexo das canções que a canção de Gilberto Gil, ao tematizar a morte, revela.
O tempo exige novos posicionamentos frente ao eterno retorno não do mesmo, mas do diferente. "Não me iludo / Tudo permanecerá / Do jeito que tem sido / Transcorrendo / Transformando", canta Gil noutra canção sua. No modo como Gilberto canta a mensagem de "Não tenho medo da morte" reside a eficácia da canção: calmo, sereno, em ato de espera, de desaceleração - performance de um cancionista que "se quiser falar com Deus" sabe que precisa "calar a voz e encontrar a paz".
A espera é a vontade que se encaminha para o exterior. Não para o futuro, mas para a exterioridade do presente em sua expectativa modelar do acontecimento esperado. "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui / na vida, no sol, no ar / ainda pode haver dor / ou vontade de mijar", canta Gil: cancionista compositor de destinos.

***

 Não tenho medo da morte
(Gilberto Gil)

não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar

a morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?

não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou

então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida

Beira mar

$
0
0


Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia antropofágica) Oswald de Andrade anota que o canibalismo é um tipo de antropofagia. Porém, enquanto o segundo trata-se de um rito, o primeiro acontece movido pela fome e pela gula. Ambos caracterizam uma "fase primitiva de toda a humanidade" (p. 138).
A antropofagia por fome se contrapõe à antropofagia ritual naquilo que esta tem de transformar o tabu em totem: "Do valor oposto, ao valor favorável". "A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu", escreve Oswald (p. 139). E o que é o tabu, "senão o intocável, o limite?", pergunta-se.
O indivíduo ocidental é educado a jogar fora toda prosódia e todo saber oral, em benefício do racionalismo. No entanto, nas coerentes palavras de Tom Zé: "Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!" (Revista Bravo! 179, jul/2012).
O "lixo lógico" não é outro senão a promoção do "tabu em totem", a construção inconsciente de uma "gaia ciência", de um saber não catalogado e que escapa às ciências instituídas. Saber que se cria e se alastra sem o controle da razão. Eis o que venho defendendo aqui em relação ao saber implícito à canção popular brasileira, com suas profusões de sujeitos cancionais.
Como já escrevi: o sujeito cancional é uma categoria da performance vocal; é a entidade - primitiva - que surge no momento exato em que a canção é executada por alguém e ouvida por outro alguém conectado ao primeiro via "estados-de-espírito" no instante do tempo que dura a canção. Daí a riqueza de nossa canção popular e suas múltiplas temáticas totêmicas, favorecedoras da pluralidade dos sujeitos cancionais e, consequentemente, da "gaia ciência".
Parafraseando Nietzsche, podemos afirmar que o habitat dos grandes problemas é a canção, na rua. Ao menos no Brasil, onde tradicionalmente a canção dá voz a saberes os mais diversos, seja por fome, seja por ritual de inserção íntima na vida coletiva distante da divisão do trabalho e da organização da sociedade em classes. Dito de outro modo: Não falta canção para mimar o brasileiro e fazê-lo se sentir incluído, igual.
Isso é resultado da devoração, da antropofagia que nos une. Achar que um tipo ou um gênero de canção é ruim e/ou aliena o indivíduo é subestimar a competência antropofágica do indivíduo. Aliena em que? Para que? Em detrimento de que? Eis as perguntas que devemos fazer diante do latente preconceito: "(...) mas para outros não existia  aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina", canta o narrador de Galáxias, de Haroldo de Campos.
O fato é que o saber dos "analfabetos em Aristóteles (os "analfatóteles"), nas palavras de Tom Zé, impregnam a canção mediatizada com brilho e força. Seja o funk com a totemização do sexo, seja o rap com a totemização da violência, por exemplos.
É preciso pensar a dívida para com este saber não científico. É este débito - que dessacraliza o intocável para lhe restituir a beleza - que move, por exemplo, o grupo Cabruêra, com suas ressignificações da cultura popular oral nordestina: prenha da cultura moçárabe e dos cantadores das feiras livres.
O som do Cabruêra é o processamento de dados vocais, ainda transmitidos vocalmente na rua, na "festafeira no pino do sol a pino", como canta o narrador de Galáxias, em sua lagrimalegria esperançosa por suporta a condição presente.
Calcado na mistura inventiva da música nordestina com os sons do oriente, o disco Nordeste oculto (2012) recupera a promiscuidade originária. Aboio e microtonalidade, cítara e safona, xote e raga, a feira de Campina Grande e um mercado público do Oriente Médio em devoração antropofágica, ritual.
O disco é uma viagem sonora rica, complexa e orgânica (simples, natural). Mas, para continuar no tema da tradução do tabu (o intocável) em totem, gesto comum nas culturas antropófagas e tendentes ao matriarcado, destaco "Beira mar", de Alberto Marsicano, Arthur Pessoa, Pablo Ramires, Edy Gonzaga e Leo Marinho, e "Marujo antigo", de Oliveira de Panelas. Vindo esta antes daquela na sequencia do disco, aquela é a resposta deformativa e sagradora desta.
O grande repentista-trovador Oliveira de Panelas (canto-quase-fala e viola) tem sua função de cantador ressemantizada na canção do Cabruêra. O saber que lhe constitui e que ele oferece à cultura é absolvido pelo Cabruêra (percussão, violão, teclados, guitarra, acordeom, viola, baixo) que, por sua vez, devolve a tradição à tradição: desreprimindo o desejo.
"Cantador pra cantar beira mar comigo / tem que saber bem do oceano", canta do sujeito de "Beira Mar" após o sujeito de "Marujo antigo" ter dito "além de poeta sou marujo antigo / conheço esses mares por dentro e por fora (...) sou filho das águas convivo com elas / cantando galope na beira do mar".
O encontro hibridizador dos dois poetas - do "marujo antigo" com o "beira mar"; daquilo que é dito com o modo como é dito - revela a tradição em movimento: "lírica viagem de brisa e luar". O que ouvimos não chega a ser um desafio no sentido clássico do termo, mas um diálogo com a atemporalidade das sabedorias populares. Algo só possível na eficácia do gesto devorador do sujeito cancional criado pelo Cabruêra.

***

Marujo antigo
(Oliveira de Panelas)

Além de poeta sou marujo antigo
Conheço esses mares pode dentro e por fora
Dos raios poentes à luz da aurora
O ritmo das águas viajam comigo
Sereias de sonhos entendem o que eu digo
Na lírica viagem de brisa e luar
O mar nordestino é meu reino é meu lar
Não vejo fronteiras nas suas procelas
Sou filho das águas convivo com elas
Cantando galope na beira do mar

Beira mar
(Alberto Marsicano / Arthur Pessoa / 
Pablo Ramires / Edy Gonzaga / Leo Marinho)

Cantador pra cantar beira mar comigo
Tem que saber bem do oceano
Dos seus movimentos não terão engano
A fim de livrar-se de qualquer perigo
Além de poeta sou marujo antigo
Conheço galope na beira do mar

Sangue, água e sal

$
0
0


Cantar uma canção implica em performatiza-la - torna-la concreta pela gestualidade vocal – e mima-la, em um ato metacancional, injetar vida (calor) na canção. Cantar uma canção é tencionar e misturar matéria e espírito, sendo este um produto do cérebro (da consciência) e do coração (dos riscos).
Em sua investigação sobre "'canção ruim', voltada para a satisfação de exigências, que por definição são banais, epidérmicas, imediatas, transitórias e vulgares" (p. 295-296), Umberto Eco, em "Canção de consumo" (ver Apocalípticos e integrados), sugere que é preciso ter cuidado na análise das questões relacionadas à crise do sujeito versus as novas tecnologias, para que não caiamos nem no elogio vazio da técnica, nem no preconceito ou na nostalgia vã.
É preciso pensar a complexidade do problema que distingue cultura de entretenimento e cultura como alimento do espírito, pois é na formação cumulativa das experiências - entre o entreter e o pensar – que o indivíduo integral se rascunha, vive e atua.
Se a cultura como alimento do espírito nos sugere a emancipação do indivíduo, não podemos esquecer que a técnica (as modernas possibilidades de gravação e reprodução de uma canção, por exemplo) é um produto (fruto) da marcha do humano. Para o bem e para o mal.
Se hoje, com a dificuldade que desenvolvemos sobre a duração na capacidade de atenção, já que há inúmeros apelos e intensidades exigindo nosso olhar e nosso ouvido – podemos mudar de faixa musical em um toque –, o cérebro pulsa em inúmeras frequências, parece que estamos diante do fato de que as nossas competências cognitivas apontam para a afirmação nietzschiana de Paul Valéry: "O mais profundo é a pele".
E é também Valéry quem anota: "– Adeus, fantasmas (Leonardo, Leibniz, Kant, Hegel, Marx)! O mundo já não precisa de vocês. Nem de mim. O mundo, que batiza com o nome de progresso sua tendência a uma precisão fatal, procura unir aos benefícios da vida as vantagens da morte".
Por sua vez, Umberto Eco escreve: "O drama de uma cultura de massa é que o modelo do momento de descanso se torna norma, faz-se o sucedâneo de todas as outras experiencias intelectuais, e portanto o entorpecimento da individualidade, a negação do  problema, a redução ao conformismo dos comportamentos, o êxtase passivo requerido por uma pedagogia paternalista que tende a criar sujeitos adaptados". (idem, p. 303).
Mas, como afirmar com Umberto Eco que "a música de consumo é um produto industrial que não mira a intenção de arte, e sim à satisfação das demandas do mercado" (idem, p. 296) perante a audição de Alice Caymmi cantando "Sangue, água e sal", de Alice Caymmi e Paulo César Pinheiro (Alice Caymmi, 2012)?
Ao que tudo indica, haveria uma hierarquia dentro da cultura do entretenimento, em que uma canção seria mais ou menos arte, numa escala hipotética e infrutífera diante da competência humana e individual de ressemantizar os objetos vindos da estrutura comercial da sociedade de massas.
Mesmo mediatizada e a mercê do sistema econômico, a canção popular não se furta das marcas e cicatrizes da tradição, do tempo, da história e da garganta de quem lhe deu vida. Guardada em um arquivo eletrônico, ela aponta que as tecnologias transformam o homem (ingênuo e complexo), porque vindas deste.
Em "Sangue, água e sal", a voz de Alice Caymmi e o acompanhamento melódico derivado da mítica sirênica se unem para figurativizar a imagem que estampa a capa do disco: uma neo-sereia surrada pelo tempo, multiplicada em outras pela breve história do sujeito e ressacada por temer Yemanjá.
A rainha do mar aparece aqui como fantasmagoria da fusão amor-morte, da vida que só existe no risco de morrer, se afogar, desaparecer: "Mergulhar no mar, não saber voltar / se deixar levar pela maré". O sujeito cancional que surge na interpretação de Alice rompe a dor com efeitos eletrônicos, ciranda a ilha com técnica e quer morrer para viver com Yemanjá - a grande sereia, mãe da sereia Alice.
"Sangue, água e sal" trai e não trai a "lógica das fórmulas" identificadas por Eco nas canções de consumo. Sim, há um tempo que se adéqua ao tempo breve das canções de consumo. Mas o modo e o cuidado identificado pelo ouvinte na execução eternizadora (porque fixa, gravada) da canção desperta um "expandir para dentro", um viver em si, uma quietude desestabilizadora que promove o pensamento, a concentração. A artesania (a singularidade) está na voz de quem canta, é isso que alguns teóricos do elogio à escrita não percebem.
Ou seja, não só de escrita e leitura vivem as experiências do indivíduo. Ele não sai sem marcas. E este processo é individual e singular, mexe com fissuras e crivos únicos. Por isso o erro das generalizações quando o assunto é arte, conhecimento e construção do eu. 

***

Sangue, água e sal
(Alice Caymmi / Paulo César Pinheiro)

À luz do luar
flores de Yemanjá
cobrem o altar do meu amor

Sangue, água e sal
o amor não tem dó
de quem não tem medo de amar

Pode se afogar, desaparecer
quem nunca temeu Yemanjá
Mergulhar no mar, não saber voltar
se deixar levar pela maré

Tia Nastácia

$
0
0


No momento em que se discute se o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, deve ou não ser recolhido "à escuridão do ventre de onde (para alguns) não deveria nunca ter saído", Adriana Partimpim ressurge cantando "Tia Nastácia" no seu disco Tlês (2012).
A canção é uma adaptação que Dorival Caymmi fez de outra canção também sua "História pro sinhozinho". Se nesta tínhamos uma certa Sinhá Zefa, naquela, feita para integrar a trilha sonora do seriado Sítio do Picapau amarelo (1977), temos a presença de Sinhá Nastácia.
Do mesmo modo que fez ao tematizar a morte ("Saiba", no disco Adriana Partimpim - 2004) e o amor entre Alexandre e Hefestião ("Alexandre", Dois - 2009), em atitude que parece pouco comum a uma criança, mesmo em tempos de internet, Partimpim não dá respostas, ao contrário, complexifica a questão, posto que ao cantar "Tia Nastácia" insinua reconhecer a força da personagem na história da literatura e da formação da cultura brasileira.
A pergunta é: negar a existência do racismo, ocultar ele dos olhos das crianças – pares de Partimpim – promoverá sua extinção, ou simplesmente servirá apenas como mais uma máscara à hipocrisia? Partimpim parece dizer "não" ao não, à proibição dos livros. Afinal, precisamos manter os olhos cheios de esperança por uma educação livre, laica e plural. É preciso discutir todos os temas.
Sim, ao que tudo indica Lobato disse sentir inveja dos norte-americanos geradores da Ku Klux Klan. No entanto, o simples gesto de taxar o autor de racista não resolve a segregação disseminada, além de ser uma redução precária da obra total, densa e ampla do autor. É como dizer hoje, algo anacronicamente, que Gregório de Matos era racista, pela forma como "tratava" as mulheres negras em sua poesia, lá nos idos seiscentos. Ou que Machado de Assis era racista por, aparentemente, não tratar do tema da escravidão. Texto é contexto, aprendemos isso desde cedo.
E como não chamar para a conversa a canção "Sinhá", de Chico Buarque e João Bosco, cujos versos "(...) Por que talhar meu corpo / Eu não olhei Sinhá / Para que que vosmincê / Meus olhos vai furar / Eu choro em iorubá / Mas oro por Jesus / Para que que vassuncê / Me tira a luz (...)", por exemplo, em que uma escrava roga clemência, argumentando-se já europeizada, tematizam a formação complexa do povo brasileiro?
Assim como as demais formas de preconceito e discriminação, e se Aqui ninguém é branco, como tão lucidamente defende a professora Liv Sovik em seu livro, o racismo – crime inafiançável – precisa ser reconhecido e debatido. "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (...) É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte", anotou Joaquim Nabuco.
Na canção de Caymmi Sinhá Nastácia é celebrada como aquela que nina: entoa a canção necessária à construção da imaginação do sinhozinho. Contraponto de Dona Benta (de formação europeia), Nastácia – “negra, de beiços grandes, assustada e medrosa, cozinheira de mão cheia” – enche oSítio do Picapau Amarelo com as narrativas do folclore brasileiro.
É por este viés que podemos dizer que a canção "Tia Nastácia" trabalha com a polifonia: há uma primeira voz que narra a cena da "hora em que o sol se esconde / E o sono chega / [e] O sinhozinho vai procurar / A velha de colo quente / Que canta quadras e conta histórias"; uma segunda voz que se desdobra em duas: a voz do sinhozinho pedindo canção e a voz do narrador da canção apresentando Sinhá Nastácia – "que conta história / sabe agradar / que quando nina / Acaba por cochilar / [e] vai murmurando / estórias para ninar"; e uma terceira voz que é a voz da própria Sinhá Nastácia cantando as tais estórias cheias de memória e musicalidade de um povo: "Pêxe é esse meu filho / Não meu pai / Pêxe é esse mutu, manganem / É a toca do mato guenem, guenem / Suê filhoê  / Tocaê marimbaê".
Fica claro e cabe lembrar que a polifonia é a coexistência e a interação de várias vozes em um mesmo plano narrativo. A polifonia complexifica a estrutura, como podemos perceber na canção de Caymmi, com a mescla dos registros conversacionais exigindo do ouvinte a atenção para a troca e a interação entre os turnos. Além disso, não há uma narrativa encadeada, favorecendo a mistura e a justaposição de informações diferentes. O que, por sua vez, dificulta e amplia a definição da categoria do “autor” daquilo que é dito. E como não pensar neste artifício estético como um instrumento poderoso de análise da cultura brasileira?
Em "Tia Nastácia" a voz do narrador convive com a voz da velha de colo quente e, penso, com a voz do sinhozinho embevecido. Repito de outro modo: a canção desloca a personagem de seu contexto pretensamente preconceituoso e discriminatório e a posiciona no lugar exato de quem fornece canção à vida de alguém. Lugar que, de fato, segundo muitos pesquisadores, foi/é ocupado pelas escravas e ex-escravas: substitutas legítimas das mães biológicas, estando estas mais preocupadas com outras posições na sociedade.
Sinhá Nastácia aparece na maior parte da obra de Lobato como a reprodução da Mammy norte-americana – matrona, geralmente solteira e dócil feita para cuidar da cria dos brancos. Na canção, por sua vez, percebo uma quebra na relação de superioridade que vai do sinhozinho à ex-escrava: aqui a subordinação é amolecida. O uso do "sinhá", redução carinhosa e brasileira para "senhora", é índice disso.
Nastácia é a mantenedora da vida, da canção. Importa lembrar que das mãos de Tia Nastácia nasceu Emília: a boneca-gente, esperta e atrevida – mímeses (pré-representação) da Partimpim da capa do disco Tlês? Por falar nela, a postura da mão da Partimpim-boneca tanto remete ao 3 (tlês), quanto ao gesto de “ok”: tudo certo. Mas também é índice do “gesto do conhecimento” na posição de lótus para meditação. O que poderia explicar o clima mais cool (para dentro) de Tlês, um tanto diferente dos discos anteriores.
Talvez por investir demais na “voz” do sinhozinho e no acalanto contido na letra, a versão de “Tia Nastácia” de Partimpim não tem o pulso vibrante da versão de Mariene de Castro (Tabaroinha, 2012), que lindamente impregnou a canção de extratos sonoros e gestualidades vocais que iluminam a canção por dentro, investindo no axé (energia, poder, força) da “voz” de Nastácia. Partimpim se aproxima mais da versão de 1977 do próprio Caymmi e da que Maria Bethânia fez para o disco Pirata (2006), onde canta “História pro Sinhozinho”, versão original da canção, com a presença de Sinhá Zefa, ao invés de Sinhá Nastácia.
"Tia Nastácia" na voz de Partimpim "É Gilberto Freyre em sua glória", dirá Adriana Calcanhotto, cavalo de Partimpim. Seja como for, o racismo na obra de Lobato não pode ser motivo para a proibição de livros. Mas, em atitude superiormente interessante, deve servir de mote para debates entre pais e filhos, educadores e alunos, sociedade e indivíduos. É isso que Partimpim me diz quando a ouço cantar "Tia Nastácia". Isso sim auxiliará positivamente na formação das crianças: pares de Partimpim – a criança que ainda não domina erres e eles, daí o tlês título do disco, mas já sabe o quanto de ensinamento, amor e alegria as histórias da Sinhá Nastácia podem trazer.

***

Tia Nastácia
(Dorival Caymmi)

Na hora em que o sol se esconde
E o sono chega
O sinhozinho vai procurar
Hum hum hum
A velha de colo quente
Que canta quadras
Que conta história para ninar
Hum hum hum

Sinhá Nastácia que conta estória
Sinhá Nastácia sabe agradar
Sinhá Nastácia que quando nina
Acaba por cochilar
Sinhá Nastácia vai murmurando
Estórias para ninar

Pêxe é esse meu filho
Não meu pai
Pêxe é esse mutu, manguenem
É a toca do mato guenem, guenem
Suê filhoê tocaê marimbaê

No mundo do lua

$
0
0
Porque a performance vocal trabalha com a energia dos mitos, sonhos e paixões do cantor e do ouvinte, quando Gilberto Gil interpreta "No mundo da lua" (para a trilha sonora do filme Gonzaga – de pai pra filho, 2012), o compositor conecta-se ao Lua, vira o mundo deste de pernas para o ar, lançando-se também no ar como presentificação material daquilo que o outro (homenageado) é.
É na performance vocal de quem canta o canto de Luiz Gonzaga que as canções – imateriais – do rei do baião (sobre)vivem a engendrar vida nos signos da seca, do Nordeste, do Brasil. Na letra da canção, o canto tanto faz referência às canções e ao modo de cantar de Luiz Gonzaga, quanto ao canto-lugar: "E o povo canta o canto que eu cantei / Não importa o certo e o errado, o bem e o mal", diz o sujeito da canção.
Gilberto Gil, que a partir do contato com a Banda de Pífanos de Caruaru se encheu de novas perspectivas para pensar junto com Caetano Veloso a Tropicália como um projeto estético brasileiro, rompe a separação entre sua persona e a persona de Gonzaga através da canção, do canto do povo de um lugar.
Cavalo de Gonzaga, Gilberto Gil é Gonzaga presentificado, ambos feitos de canção. E o que era para ser uma homenagem transmuta-se em contato e revelação. Pela voz por vezes embargada de Gil no programa de TV, Gonzaga se comunica de novo com seu povo. Gonzaga-sujeito-cancional reconhece no milagre divino o poder de cantar a felicidade da existência. E renega tudo que não for motor de canção: "Se o milagre acontecesse de eu voltar / Sem poder sair cantando por aí / Juro que eu pedia a Deus pra me polpar / De um milagre assim tão besta, tão chinfrim", canta via Gil.
E, assim, a primeira pessoa (Luiz) soa como eu (Gil) sou, a segunda pessoa (Gil) soa como tu (povo que canta o canto que Luiz cantou) és e a terceira pessoa (o mesmo povo) soa como ele (Luiz) também. Em um ciclo infinito de filigranas que se conectam e se plasmam umas às outras constituindo a esperança de um dia não ser mais triste não.
Se por um lado Vinícius de Moraes cantou que "o samba é a tristeza que balança / e a tristeza tem sempre uma esperança / (...) / de um dia não ser mais triste não", e por outro lado o grupo Falamansa cantou que "toda mágoa que passei / é motivo pra comemorar / pois se não sofresse assim / não tinha razões pra cantar", o canto de Luiz mostrou que também o baião, outra forte e potente matriz sonora identitária do Brasil, afirma que "o meu cantar é um soluço / a galopar no maçapê".
Tal e qual Jackson do Pandeiro que dizia "eu quero ver a confusão / olha aí o samba-rock meu irmão", Gonzaga soube mirar, estilhaçar e condensar as sonoridades de sua região a um nível de significação e entendimento universais. Mostrou de onde vem o baião: "Vêm debaixo do barro do chão". De onde "suspira uma sustança sustentada por um sopro divino".
"O termo 'baião', sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas nordestinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a afirmação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar é recitativa e monocórdia, o 'baião' é a única sequência rítmica e melódica. O grande estalo de Luiz Gonzaga foi de perceber a riqueza desse trechinho musical, de sentir que ele carregava em si a alma nordestina, e todas as influências que marcaram a música do Nordeste", anota Dominique Dreyfus no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga.
E é este sopro milagreiro que faz Gilberto Gil cantar "No mundo da lua". Posto que é de lá, das noites do sertão, que vem os elementos constituintes da canção (letra, música e voz), Gilberto Gil ao cantar é Luiz, assim como o povo ao cantar as canções gravadas é Gonzaga xaxando para xaxar, cantando para cantar: de novo. "Só faz milagres quem crê que faz milagres / como transformar lágrima em canção", diria Zeca Baleiro.
"Saudade o meu remédio é cantar", parece ser o mote de Gilberto Gil e do povo que mantem acesa a fé na festa disseminada por Gonzaga. E assim a tristeza balança, a vida se enche de graça, mesmo sem sentidos aparentes para tanta miséria e dor. Lágrima em canção: "Tudo em volta é só beleza / céu de abril e a mata em flor". E o milagre acontece: Gonzaga está. E junto com tudo o que o seu canto e suas canções mimetizam.
Fustigados pela seca e pelo eterno vento, o sujeito cancional criado na voz de Gil se une ao sujeito da canção que Gonzaga pseudo-psicofonicamente recita. "Que vocês ainda possam me escutar / Através das minhas velhas gravações / É sinal que o mundo vai continuar / A viver de mitos, sonhos e paixões". Os versos cantados por Lua indicam que pela materialidade dos arquivos sonoros gravados é permitido ao cantor viver eternamente. Além do bem e do mal. "A canção do povo alegre não tem fim", diz Gil.


***

No mundo do lua
(Gilberto Gil)

Se o milagre acontecesse de eu voltar
E o meu vulto aparecesse no sertão
E o povo me pedisse pra cantar
E na hora me faltasse o vozeirão

Se o milagre acontecesse de eu voltar
Sem poder sair cantando por aí
Juro que eu pedia a Deus pra me polpar
De um milagre assim tão besta, tão chinfrim

Afinal de contas se ainda sou rei
É que aí na terra tudo é tão real
E o povo canta o canto que eu cantei
Não importa o certo e o errado, o bem e o mal

Que vocês ainda possam me escutar
Através das minhas velhas gravações
É sinal que o mundo vai continuar
A viver de mitos, sonhos e paixões



Lanterna dos afogados

$
0
0


"A luz da 'Lanterna dos Afogados' brilha como um convite. Antônio Balduíno deixa o cais, levanta-se da areia que o acaricia e se dirige em grandes passadas para o botequim. A lâmpada de poucas velas mal ilumina a tabuleta que traz o desenho de uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros. Por cima uma estrela pintada com tinta vermelha, derrama sobre o corpo virgem da sereia uma luz clara que a torna misteriosa e difusa. Ela retira da água uma suicida. E por baixo o nome: 'LANTERNA DOS AFOGADOS'" (Jubiabá, Jorge Amado. p. 128).
No Brasil, distanciadas da mitologia grega, reforçada pela ideologia judaico-cristã, que transferiu à mulher apenas a monstruosidade calcada na figura da sereia, as sereias, porque ligadas à imagem de Iemanjá, que, por sua vez, sicretizou com Maria (cristã), guardam os mitemas da doçura, da possibilidade do desvio ao real duro, do colo, do mimo.
"Ateu e viu milagres", admirador e difusor das sabedorias africanas, fazendo de algumas de suas obras um território da complexificação do sincretismo religioso brasileiro, Jorge Amado empresta à sereia desenhada ("mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros") o enigma de ser aquela que salva o afogado. Obviamente, apenas pelo trecho citado, não podemos saber se a sereia guiará o afogado de volta à vida na terra, ou o arrastará para a vida no mar.


Seja como for, a sereia mimetiza o nome do lugar. Ela é a lanterna dos afogados, dentro de uma cultura - a dos pescadores - em que o homem se vê constantemente dividido entre o bem de terra e o bem de mar. Também, noutra perspectiva, ela é o botequim, a bebida que alivia e ajuda o homem a se desligar das dores da luta diária: a bebida como promotora de uma vida (mais real). E daí o afogar as mágoas nos braços da sereia.
Ela é o destino mais que perfeito para quem viveu do/no mar. Com seu canto impregnado de maresia e convites à libertação da dor, a sereia salva, mais do que mata, como comumente se prega. Ela é a "luz no túnel", o "cais de porto" "quando chega a noite / E você pode chorar", como canta o sujeito da canção "Lanterna dos afogados", de Herbert Vianna.
A conhecida canção ganha tons insondáveis quando o compositor a interpreta com Gal Costa (Gal Costa Acústico , 1997). A voz de Herbert entoa a primeira estrofe da canção até o refrão, quando diz: "Eu tô na Lanterna dos Afogados / Eu tô te esperando / Vê se não vai demorar". Só aí entra, sem demora, a voz de Gal como a sereia que responde (ajuda) ao apelo do sujeito da canção: "Uma noite longa / Pra uma vida curta / Mas já não me importa / Basta poder te ajudar". A lanterna dos afogados é também, agora, a voz (garganta acesa) da sereia-Gal.
Depois disso, depois de devidamente em sintonia com a tal Lanterna dos Afogados (o botequim, o espaço cancional criado pelas vozes e pelos instrumentos), os dois, as duas vozes se mesclam no canto dos versos indicando o cais em que cada um se transformou para o outro. É por isso que, sem dúvidas, esta versão de "Lanterna dos afogados" guarda um dos mais belos encontros entre forma e conteúdo. Ambos pertencem e são a Lanterna dos Afogados.
Ele canta já da Lanterna, evoca a musa, canta para que a sereia venha e salve a noite, a vida. Ela chega, e ao cantar, mais tarde, os mesmos versos que ele cantou, se conecta a ele. Ambos afogados e salvos um no outro, no canto, na voz do outro, parceiro na noite escura. Tal e qual a personagem de Jorge Amado que ouve a toada triste que vem do mar. "O Gordo está atento à canção dos marinheiros: - É bonito. - E você entende? - Não, mas me bole cá dentro..." (p. 129).
É isso, um bulir por dentro o que acontece com o sujeito cantado de "Lanterna dos afogados". E isso só é possível nesta versão em dueto, já que na versão com apenas uma voz não há o cais, compartilhamento, resposta à vida curta, mas apenas a angústia da ausência e do afogamento. Como na bonita e visceral versão de Cássia Eller (1994).
"E são tantas marcas / Que já fazem parte / Do que sou agora / Mas ainda sei me virar". Se o naufrágio já aconteceu, ou vai ou não acontecer, pouco importa. O sujeito será sempre a fratura entre o bem de terra - "lindas sirenas / morenas" - e o bem de mar - "uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros (...) o corpo virgem da sereia [envolta] em luz clara que a torna misteriosa e difusa". O sujeito da canção estará sempre à deriva.

***

 Lanterna dos afogados
(Herbert Vianna)

Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que sou agora
Mas ainda sei me virar

Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

A volta da Asa branca

$
0
0


"Chega! / Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. / Minha boca procura a 'Canção do exílio'. / Como era mesmo a 'Canção do exílio'? / Eu tão esquecido de minha terra... / Ai terra que tem palmeiras / onde canta o sabiá!". São com estes versos que Carlos Drummmond de Andrade fecha o poema "Europa, França e Bahia", poema cujo sujeito poemático, após parecer deslumbrar-se com as belezas sedutoras dos países civilizados, sente saudade e tem os "olhos brasileiros sonhando exotismos".
Para ele e diante dele, em gesto antropofágico, a torrer Eiffel é um imenso caranquejo; "submarinos inúteis retalham mares vencidos"; "a Itália explora conscienciosamente vulcões apagados"; e é das águas sujas do Sena que a sabedoria escorre. "Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa", afirma. Estranho a tudo e desentendido de tudo, ele quer lembrar a canção do exílio, aquela que canta os exotismos da [sua] terra e, por isso mesmo, faz o sujeito retornar à terra familiar e íntima.
Guardado no livro Alguma poesia, "Europa, França e Bahia" serve para complexificar a discussão da importância da tão temida "cor local". Tendo o seu uso mal compreendido, ou rejeitado veementemente, confundiu-se por muito tempo, a fim de inserir o Brasil na modernidade, cor local e exotismo. Para este segundo termo, não há melhor entendimento do que o dado por Caetano Veloso ao final da canção "Um índio": "aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos, não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio".
Como já sabemos, o exótico só é visto na perspectiva depreciativa do termo por aqueles que não alcançam a obviedade o objeto/sujeito sob o olhar. O outro, sempre diferente, é exótico. O lugar que desconheço e cuja gente age de modo "oposto" ao meu, é exótico. Sob a pecha de exótica, Carmen Miranda voltou os olhos do mundo para o Brasil. Pagou caro por isso, renegada pela elite pensante, mas sabia que o povo que ela representava tinha nela a esperança (espelho refratário) de distinção e de reconhecimento universal.
Portanto, como venho tentando defender aqui, se a canção popular brasileira é a tradução prática da gaia ciência pensada, noutro plano de interpretação, por Nietzsche, posto que heterogênea e permeável, ela o é porque se alimenta de matrizes múltiplas, de produções populares diversas e de cores locais singulares e amalgamáveis.
Na canção popular brasileira, entretenimento, informação e criação se misturam forjando a educação ético-estético-filosófico-sentimental do brasileiro. Desde sempre foi assim, misturas de misturas, até entre linguagens diferentes. Isso se opõe a uma certa e interessada imagem única e limpa - pós-Bossa Nova - que alguns teóricos tendem fazer do Brasil para o exterior, a fim de se fazer entender pelos seus pares.
Mas, como sabemos "o baião vem de baixo do barro do chão da pista onde se dança" e "ninguém me salva / ninguém me engana / eu sou alegre / eu sou contente / eu sou cigana / eu sou terrível / eu sou o samba". O entendimento e a compreensão da canção popular - forjada e alimentada nos extratos populares - escapam à tradução meramente socrática, academicista.
Focado na força da cultura popular da Grécia Antiga, e defensor da superioridade do popular, Nietzsche elabora e desenvolve novas modalidades de percepção da cultura, nas quais não entra o rancor daquilo que vem do povo. Pelo contrário, Nietzsche nos ajuda a repensar a estigma da ignorância dada à cultura popular pela lineariedade capitalista de subjetividades controladas.
É no sentido nietzschiano que Luiz Gonzaga é gênio, por aglutinar elementos espalhados na cultura popular que lhe forjou a obra, as canções - muitas de exílio. Um exemplo é que a musa Rosinha, condensação de várias mulheres sertanejas, serve à apropriação imagética de todo e qualquer sertanejo distante de sua mulher, por causa da seca do sertão "das muié séria / Dos homes trabaiador". "O mundo não vale nada / Sem amor de Rosinha / Por isso vivo a sonhar / Com a minha moreninha".
Gonzaga estetizou o sertão e moldou uma imagem do nordeste não apenas nas letras que cantava e no jeito de corpo (e vestimentas), mas, principalmente, na voz. É no timbre adequado, porque carregado de vivência, ao ritmo da sanfona onde mora a beleza do canto de Luiz preenchendo casas humildes, comuns, simples de alegria e esperança, matenedouras do homem na terra: "A seca fez eu desertar da minha terra / Mas felizmente Deus agora se alembrou".
É do luxo exuberante e óbvio do vivente-cantador da "festafeira no pino do sol a pino", cantador das tragédias do cotidiano, cordelistas da vida comum e fantástica, que a voz de Gonzaga se alimenta. A gestualidade vocal de Luiz Gonzaga figuratizava o "sertão é em todo lugar; o sertão é dentro de mim" rosiano. Posto que a voz de Gonzaga, seu modo de cantar e dizer, é a grande vereda dos sertões geográficos e íntimos. O que é "A volta da asa branca" senão uma fresta de luz no corpo ressequido do sertanejo? Um bálsamo sonoro na intemperância dos dias de muito sol e quase nenhuma água.
Foi deste recanto também que Haroldo Campos pinçou as estrelas, planetas, satélites de suas Galáxias. Se "(...) para / outros não existia aquela música não podia porque não podia popular", é esta música vinda do povo e cantada pelo povo que alimenta a vida do povo: injeta remédio e veneno na existência.Exótica, óbvia é esta canção que sustenta o indivíduo com saudade de sua terra que "tem palmeiras onde canta o sabiá". É ela que faz ele querer voltar e, de novo, tentar - ir indo: "A asa branca / Ouvindo o ronco do trovão / Já bateu asas / E voltou pro meu sertão / Ai, ai eu vou me embora / Vou cuidar da prantação". "Chega! / Meus olhos sertanejos se fecham saudosos".
Gilberto Gil (Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga, 2012) capta esta alegria do povo e da natureza natural inventada por Luiz Gonzaga ao cantar "A volta da asa branca" com acompanhamento festivo. Ele investe no sujeito que se enche de novas vontades: "(...) E se a safra / Não atrapaiá meus pranos / Que que há, o seu vigário / Vou casar no fim do ano".
Em entrevista à revista Bravo!(dez/2012), Gilberto Gil declarou: "Eu não existiria sem Gonzagão". Eu completaria que nem o sertão, nem o Nordeste, como os entendemos hoje, existiriam sem a voz de Gonzaga, sua agonia transvalorada em som. É ele o sabiá a sustentar memórias, crônicas e declarações de amor aqui na voz.

***

A volta da asa branca
(Zedantas / Luiz Gonzaga)

Já faz três noites
Que pro norte relampeia
A asa branca
Ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas
E voltou pro meu sertão
Ai, ai eu vou me embora
Vou cuidar da prantação

A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria
Dos homes trabaiador

Rios correndo
As cachoeira tão zoando
Terra moiada
Mato verde, que riqueza
E a asa branca
Tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre
Mais alegre a natureza

Sentindo a chuva
Eu me arrescordo de Rosinha
A linda flor
Do meu sertão pernambucano
E se a safra
Não atrapaiá meus pranos
Que que há, o seu vigário
Vou casar no fim do ano.

Canções velhas para embrulhar peixes

$
0
0


O título do livro do professor Roberto Schwarz - A sereia e o desconfiado - entrega a temática dos ensaios que investigam os mecanismos de seduções da arte, no caso, da Literatura. É da posição do desconfiado, qual o Ulisses amarrado no mastro, que Schwarz vai descobrindo para si, e revelando ao leitor, os elementos sirênicos da Literatura e, de viés, da cultura.
O que fica de mais positivo da leitura do livro do professor, cujo título foi o despertador de minha atenção, é o exercício do cruzamento de conhecimentos a fim de circular o objeto analisado. E isso revela muito do meu método de audição e apreensão de canções, do canto neosirênico. Muito embora o meu esforço seja sempre o de me colocar à deriva, solto no mar sonoro, mar sem fim. Procuro navegar muito mais ao lado da certeza da desconfiança, do que da desconfiança da certeza.
Petulância e inquietude acompanham o ouvinte-leitor de canção. A este não basta a mera paráfrase da letra, muito menos dizer com suas palavras aquilo que o cancionista "quis dizer" ao conceber a obra, haja vista estar trabalhando com um blend (mix) complexo de linguagens. O objetivo aqui é tentar entender aquilo que o sujeito cancional - esta entidade estética só apreciável no instante exato da execução da canção - canta. E isso só é possível sem cordas e sem ceras.
Obviamente não há um jeito certo, uma metodologia única e completa para tal empreendimento, daí a dificuldade e o estado de sempre naufrágio do ouvinte-leitor. E quando este, ao invés de usar a canção como exemplo (confirmações) para teses e teorias pré-concebidas, capta a teoria (singularidade, filosofia) contida na canção, o objetivo está cumprido. Mas como fazer isso, captar singularidades, diante do mar aberto e sem fim, da profusão de canções que cotidianamente nos chegam aos ouvidos? Eis o esforço: dobrar-se aos encantos das sereias e deles extrair vida, "esperança de saúde, embriaguez da convalescença", diria Nietzsche.
Creio ter sido movido por este estado-de-poesia que Odilon Redon (1840-1916) desenhou Femme à l'aigrette (ou, Sirène à l'aigrette), transcriando o poema "Un coup de dés", de Stéphane (Étienne) Mallarmé. Redon investiu nas primeiras palavras do poema. Cito aqui de modo linear, radicalmente oposto e cruel aos efeitos estéticos lançados por Mallarmé: "UM LANCE DE DADOS / JAMAIS / ABOLIRÁ O ACASO / MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS / ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO (...)".
Como sabemos, o poema "Um lance de dados" revolucionou a poesia. Nas palavras de Augusto de Campos, ele é a "base e fundamento da nova formulação poética". Vale a pena citar: "O 'lance de dados' mallarmeano instiga e precipita rumos inteiramente inéditos para a poesia. Rejeitando as esterilizantes formas fixas e o verso-livre (álibi para todas as acomodações), Mallarmé passa a organizar o espaço gráfico como campo de força natural do poema. Vale-se dos mais diversos recursos tipográficos, sempre num plano de funcionalidade, para criar numa constelação de relações  temáticas (que chama de 'subdivisões prismáticas da Ideia'). Com esse processo, pode-se dizer que Mallarmé, colocando 'em situação' a sua própria obra e a poética moderna, 'opera, através da poesia, a junção da música com a arquitetura visível'".
A sereia graciosa, e um tanto burguesa, haja vista a vestimenta, criada por Redon aponta a equalização em perspectiva enigmática entre som e sentido advindos do poema-letras-soltas-móbile no papel-mar mallermeano. Ela indicia o acaso. E "Todo Pensamento emite um Lance de Dados", encerra o poema. Não às respostas. Sim à irrespondibilidade.
O lance de dados é a travessia (um estado de coisas a outro) que a sereia representa. Apelo à intuição. As sereias têm dessas coisas. Elas são o acaso em ação. "O canto das sereias seria a indiferenciação entre o sujeito que narra e o sujeito narrado, entre a manifestação e a significação: canto sem diferenças, sob o qual se prometeria a pura perda de diferenças do silêncio, do ponto zero da descrição", anota David E. Wellbery em Neo-retórica e desconstrução (p. 195-196).
Mas para que servem as canções? Se, como sugerimos anteriormente, o sujeito cancional só se revela no instante em que a canção entra pelos ouvidos, para onde vai a canção quando finda a melodia? A canção serve para sustentar o ouvinte no mundo. Enquanto ela dura, o ouvinte pensa ter o mundo nas mãos, ao final, ele amanhece mortal.
As canções envelhecem? Diante dos artifícios de eterno presente criado por elas, aliados às técnicas de armazenamento e reprodução, podíamos dizer que não, as canções não envelhecem. Mas aí Peri Pane complexifica a questão e cria uma canção cujo título – “Canções velhas para embrulhar peixes” associa a função da canção à função do jornal, abre brechas à temporalidade (validade) da canção.
Ora, se tal e qual o jornal, cronística, informativa (daquilo que sabemos, mas que precisa ser revelado por fora), a canção nos situa no instante do cotidiano, ela envelhece na medida em que cumpre seu papel de revelação do ouvinte ao ouvinte. No entanto, sendo este ouvinte propício às circularidades da ilusão necessária a todo indivíduo, a "mesma" canção retornará mais adiante. Em diferença.
Ou seja, a canção envelhece sem envelhecer de todo, pelo menos não como objetivamente entendemos o envelhecimento. Como diz a letra de Peri Pane, a canção fica velha quando "embrulha peixes". Tal e qual o jornal de ontem: serviu à leitura das informações e agora pode ser descartada, serve de outro modo, envolvendo peixes mortos, lembranças que devem ser "varridas pra debaixo dos tapetes".
Se pensarmos de modo macro, podemos inferir sobre a profusão de canções que são lançadas e rapidamente, logo após rápido sucesso e furdúncio entre os indivíduos, somem: "antes confetes, serpentinas / Hoje embalam as traças entre as naftalinas", como canta o sujeito da canção (Canções velhas para embrulhar peixes, 2012).
"Canções no escuro de hds, gavetas / Versos calados, surdos, cegos de muletas / Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas / A espera laça os futuros escafandristas", completa o sujeito, evocando não apenas a descartabilidade das canções e, consequentemente, das histórias que cada canção carrega, mas também dos indivíduos.
Sintomaticamente, a capa artesanal do disco é ilustrada por uma sereia criada pelo artista plástico Rafael Gentile, a partir da técnica do estêncil. Altiva, cabelos soltos, a sereia aparece solta no ar, no mar, intimidando o ouvinte. Frágeis como os indivíduos, as canções envelhecem com estes, dentro destes, recrudescem: juntos frente aos apelos da sereia, do acaso, no lance de dados. Canções à espera não de futuros amantes, mas de futuros escafandristas.

***

Canções velhas para embrulhar peixes
(Peri Pane)

Canções velhas para embrulhar peixes
Doidas varridas pra debaixo dos tapetes

Canções antes confetes, serpentinas
Hoje embalam as traças entre as naftalinas

Canções no escuro de hds, gavetas
Versos calados, surdos, cegos de muletas

Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas
A espera laça os futuros escafandristas

Quando a canção acabar

$
0
0


"(...) tudo pode ser estória tudo depende da hora tudo depende / da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada / de nada de nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas / e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e / nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total / tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro (...).
Acredito que não há melhor tradução poético-verbal para aquilo que tenho chamado aqui de sujeito cancional do que este conjunto de palavras extraído da primeira página do livro Galáxias, de Haroldo de Campos. Sendo um ponto luminoso no turbilhão plano/opaco do cotidiano, o sujeito cancional surge no estado de similaridade entre o sujeito da canção (a voz que "fala" de dentro da canção) e o ouvinte: tudo, nada, agora, nunca - eco que vai de um para o outro.
O sujeito cancional é o tempo-espaço de aproximação concreta entre a voz que sai da boca de alguém-cantor (ou das caixas acústicas, mediadoras da voz humana) e o entendimento que entra pelos ouvidos de outro alguém-ouvinte. Um depende do outro, como a mãe depende do filho para ser mãe e o filho depende da mãe para ser ninado, ser pavão. E é nesta relação complexa que a gaia ciência se nutre.
Não há objetivos específicos no cantar, ou um estado final a ser alcançado, a não ser o simples, natural e humano êxtase do gesto de cantar e ser cantado. Canção (estar em estado-de-canção) é a não calmaria, é o naufrágio prazeroso em mar aberto sem cais. E, imediatamente cônjuge ao estado anteriormente descrito, a canção é o cais sem cais: enquanto ela durar, enquanto o ouvinte se sentir mimado, íntimo do sujeito da canção em sua certeza da fragilidade de existir, o ouvinte se fortalece e segue.
Encontro um exemplo primoroso deste movimento na canção "Quando a canção acabar", de Luiz Tatit. Tatit cria uma personagem-cantora que tem o agora (já) e o mar no nome: Jacimara - sereia indígena do "eterno presente", da lua boa para a guerra, do estado-presente das mensagens das canções. Ao mesmo tempo em que o "jaci" sugere algo que passou, já se foi enquanto está passando, sendo: presente-do-futuro-do-pretérito. Eis o tempo das canções: "tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro", anota o narrador-cantor de Galáxias. "Quando é neste momento / E neste lugar (...) Já é", diz o sujeito da canção de Tatit.
Mas, contrapondo-se à personagem Jacimara, "a rainha da farra / para ela o verão / é tocar guitarra / parece a cigarra", surge Jaqueline: aquela que virá "quando o inverno chegar / quando a canção acabar". Ou seja, a canção não morre nunca, pois com uma (Jaqueline) rendendo a outra (Jacimara) sempre haverá canção - sempre haverá o já-cantável porque sempre há o humano - representado pelos nomes de mulheres - necessitando cantar e ser cantado.
Não é à toa que Luiz Tatit utiliza a narrativa da cigarra e da formiga para criar "Quando a canção acabar" (Sem destino, 2010). O que fica sugerido é a continuidade do cantar, mesmo através da formiga, que, como sabemos, é mais compositora do que cantora. "E se toda a cultura / Periclitar / E se o canto mais simples / Silenciar / É sublime encontrar / Quem se anime a cantar / Jaqueline [formiga] fará". As metáforas aqui abrem a compreensão do ouvinte à finalidade sem fim da canção.
Semelhante à voz de Jacó, sua contrapartida masculina no nome, a voz de Jaqueline - gêmea da voz de Jacimara, embora nascida depois - substituirá Jacimara e cantará a vida. Porém, diferente do conto javista, Jaqueline não precisará enganar ninguém, a substituição virá no eterno retorno da existência. "A voz é a voz de Jacó", dirá Isaac diante do ardiloso filho e esperando ouvir a voz de Esaú. Este detalhe para nós serve como destaque da diferença: a voz de Jacimara difere da voz de Jaqueline e isso marca a mudança de ciclo, a evolução, a troca de turno, o fim da (para o começo de outra) canção.
É deste modo que, sensível às questões humanas, a narrativa ficcional criada por Tatit, a partir de outras narrativas ficcionais, finda por narrar (ficcionalizar) o real: a necessidade humana de narrativas, de canto, de canção. Portanto, usar o modo narrativo para tematizar a narrativa acaba sendo um artifício estético sofisticado e complexo: canção dentro de canção; real dentro do real - voz que se desdobra.
E aqui a gestualidade vocal (entoativa) do cancionista, sua dicção sempre muito perto da naturalidade da fala, reitera o caráter narrativo da canção, da história das personagens, ou melhor, do desejo de colocar as personagens dentro de uma história. Tudo sendo auxiliado pela melodia samba-de-roda-quase-baião, remetendo o ouvinte a extratos básicos (puros?) do impulso de cantar, pois, como sabemos, o samba e o baião são duas matrizes brasileiras do fazer cancional mais utilizadas pela canção popular.
Há, portanto, em "Quando a canção acabar", todo um requinte em traduzir aquilo que é dito (e no modo como é dito) na melodia e vice-versa. "Quando a canção acabar" é um libelo aos momentos de transição da linguagem cancional: de quando a cigarra dá lugar à formiga para que a canção não acabe de fato, mas seus meios de ser possam evoluir: mudar para permanecer. Basta observar que ao passar de uma personagem (Jacimara) a outra (Jaqueline) o acompanhamento melódico continua o mesmo. A esperança na vinda de Jaqueline confirma isso.
"A canção vem de situações muito primárias. A mãe embalando o filho, a cozinheira mexendo sua panela no fogão, o lavrador e sua foice pra lá e pra cá, o cara em cima do trator, a colhedeira colhendo trigo, o cara na linha de montagem, você no chuveiro. O homem canta. Sempre haverá canções. Em Marte, no futuro, eu já não estarei vivo, mas imagino um astronauta fazendo um dueto com um robô", disse Gilberto Gil, em entrevista para a revista Voe Gol.
É nisso que o sujeito da canção de Luiz Tatit parece acreditar também: no cuidado eterno que a canção imprime ao ouvinte. E é este ouvinte grávido do desejo de canção, daquilo que dá vigor e o sustenta na vida, em contato com este sujeito da canção (a voz da mensagem da canção: o eu-lírico-poético), que promove o surgimento do sujeito cancional no instante-já de quando dura a canção. Eterno retorno do sabiá-cigarra-sereia. Posto que, intuitivamente o ouvinte sabe, tal e qual o sujeito da canção também sabe, que o fim da canção equivale ao apagamento da ferida acesa que é a raça humana.

 ***

(Luiz Tatit)

Jacimara
A rainha da farra
Pra ela o verão
É tocar a guitarra
Parece a cigarra
Nasceu pra cantar
Sua vida
É um eterno presente
Pois canta o que sente
E não pensa na frente
Se o tempo anda quente
Sua voz vai soar
Nem precisa chamar
Já tá aqui pra cantar
Jacimara é pra já

Quando a mãe natureza
Vai se expressar
Quando é neste momento
E neste lugar
Já se ouve seu som
Já se sabe que é bom
Jacimara já é
Um luau
Assim natural
Já é

Jaqueline
Compõe noite e dia
São tantas cantigas
Que às vezes intriga
Parece a formiga
Só quer trabalhar
Sua vida
É um cuidado eterno
Pois passa o verão
A compor pro inverno
E guarda as canções
Pra se um dia faltar
Quando o inverno chegar
Quando a canção acabar
Jaqueline virá

E se toda a cultura
Periclitar
E se o canto mais simples
Silenciar
É sublime encontrar
Quem se anime a cantar
Jaqueline fará
Seu sarau
Será o final
Será?

Rainha das cabeças

$
0
0


No discurso 'Ler e escrever' do livro Assim falou Zaratustra, Nietzsche escreve: "E quanto a mim, que amo a vida, parece-me que os que melhor entendem a felicidade, são as borboletas e as bolas de sabão, e todos os que se lhes assemelham. / Ao ver voejar essas pequenas almas leves e prazenteiras, graciosas e volúveis, Zaratustra sente tomá-lo uma vontade de chorar e de cantar. / Só posso acreditar num Deus que soubesse dançar. / (...) / Aprendi a andar; deste então corro sem esforço. Aprendi a voar; desde então já não espero que em empurrem para mudar de sítio. / Vede como me sinto leve; vede, vôo; vede, sobrevôo-me; vede, há em mim um Deus que dança". Muito citado, o trecho oferece importantes recursos para se pensar sobre canção e sobre as corporalidades sonoras brasileiras.
Poderíamos divagar sobre a simbologia da mutante-frágil-volátil borboleta, mas quero me ater à bola de sabão, metáfora reutilizada por outros filósofos no que se refere ao viver como uma constante configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente estou pensando na teoria das esferas de Peter Sloterdijk, que dedica grande parte de sua obra à interpretação nietzschiana de esferas leves e delicadas.
Entre outras questões, Sloterdijk escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência primária do espaço (cita o útero materno como ponto de partida), as relações de dependência e apresenta uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar esferas imunológicas: as tais causas e razões das ilhas desertas de Deleuze, como queiram. É por viver - sentir-se - "ameaçado" pelo mundo de mobilidade ao redor, que o indivíduo desenvolve a busca do luxo individual, objetivando a abundância perdida desde a saída do útero.
E é aqui que ajusto meu foco: na necessidade humana de canção, do canto da fama (reconhecimento). A arte apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas (o indivíduo fica sendo parte do mundo), muito embora exploda outras: as canções de fora levam o indivíduo a sair ao mundo.
O indivíduo moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d'água (abundância) materno está solto, leve. Ele é bola de sabão: irrelevante, sem estabilidade, privado de objetividade ela precisa de um ar propício ao vôo, ao não estouro. E são muitos os motivos que levam à arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da verdade - com a permissão de experimentações de modos de vida -, e o fato do homem não estar pronto para não ser o centro do universo, são alguns deles.
Poderíamos também entrar aqui na paranóia por segurança intrínseca ao indivíduo de hoje, posto que esferas (família, escola, religião...) são sempre tentativas de solidariedade imunológica, mas não é o objetivo principal aqui. Quero avançar na leitura da citação de Nietzsche para chegar ao "Deus que soubesse dançar". E onde entrar em contato com este Deus (ou Deusa? ou deuses?) senão através das religiões de origens africanas? Brasileiro, não posso deixar de observar nessas religiões o tal Deus que dança "no" indivíduo.
Guardadas dos conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. "Na verdade, os maus impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis quanto os bons: - apenas é diferente a sua função" (...) "A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim", anota Nietzsche em A gaia ciência(respectivamente p. 57 e p. 151).
Além do bem e do mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Yorubá são os orixás. É com o sincretismo entre África e Europa, por imposição cultural desta, no Brasil e em outras colônias europeias, que teremos representações em imagens dos orixás, até então cultuados "apenas" como forças da natureza.
Metal Metal (2012), disco do trio Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa de imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões.
Um ótimo exemplo do modo como o trio bebe o sangue (a poética) de uma língua-mãe do Brasil - Yorubá - está disposta em "Rainha das cabeças", de Douglas Germano e Kiko Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo, mas estranho, porque imbricado de forma inovadora.
A letra da canção em si já detona o incômodo estético. Cheia de palavras e/ou expressões, repito, íntimas culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano, a letra presentifica no imaginário do ouvinte Awoió, tida como a Iemanjá - sim, há deuses e semi-deuses no panteão - que mais concentra feminilidade: familiar, fiel companheira, materna.  
"Awoió ori dori re / Iyemanjá cuidou / Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar". A primeira estrofe cantada com a nervura já destacada aqui indicia que não estamos - nós, ouvintes comuns, não iniciados - em lugar cômodo. A força sonora e rítmica, aliada às palavras da letra, por vezes não deixa o ouvinte entender, de pronto, a mensagem da canção. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo, precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos arrebatados pela potência ali dançante. "O ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso" (Nietzsche, idem, p. 112).
Há que se atentar sobre isso, aliás: várias canções apresentam textos muito densos e bonitos, mas também, por vezes, difíceis de captar só pelo ouvido, principalmente quando articulados com uma melodia muito recortada ou acelerada. Seria este objeto, plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida de poesia-para-ser-cantada e promover o mergulho do ouvinte? Diferente da canção-para-ser-ouvida.
Seja como for, o Ori sagrado em "Rainha das cabeças" promove a dança da intuição do ouvinte. Através do Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o ouvinte entra em estado-de-poesia: não importa muito decodificar as palavras, mas entra no movimento de pertencimento que elas, ditas daquele modo e com aquele ritmo, promovem - com o objetivo de reorganizar o sistema pessoal do ouvinte: a bola de sabão e seu alfinete altamente explosivo.
Iemanjá-Awoió cuida do cantor-ouvinte, enche a cabeça (ori) dele de mar (No horizonte do infinito) e faz dele ouvinte-cantor: dança nele. E o tabu vira totem: "tupi or not tupi", é a pergunta. "Iya olori / Mojuba Olodumaré // Ela é filha de Olokun / É iya kekerê ", diz o refrão. Olodumaré vagava pelo mundo quando por aqui havia apenas pedras e fogo. Devido ao vapor produzido, grande quantidade de nuvens precipitou sob a forma de chuva. Eis a origem dos grandes oceanos e do nascimento de todas as Yemanjás do mar. Já Olokun é, como o próprio nome revela, o proprietário do Oceano.
Se, como Nietzsche anotou: "O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado" (idem, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como canta Gilberto Gil: "Quando, hoje, alguns preferem condenar / O sincretismo e a miscigenação / Parece que o fazem por ignorar / Os modos caprichosos da paixão // Paixão, que habita o coração da natureza-mãe / E que desloca a história em suas mutações / Que explica o fato da Branca de Neve amar / Não a um, mas a todos os sete anões". 

***

(Douglas Germano / Kiko Dinucci)

Awoió ori dori re
Iyemanjá cuidou
Ade, ala, beijou
E encheu o ori de mar

Iya olori
Mojuba Olodumaré

Ela é filha de Olokun
É iya kekerê

Iya olori
Mojuba Olodumaré

Carregou uma cabeça
Sobre o adirê
Iya olori
Mojuba Olodumaré
Iya olori

Iemanjá carioca

$
0
0


É o ritmo que faz uma canção cuja língua desconhecemos nos assaltar. Mas haveria aí a eficácia da canção já que para se configurar como tal é necessário, como temos mostrado, a priori, a voz de alguém "dizendo" algo de modo singular e reconhecível para os ouvidos de outro alguém? Salvo engano, esse reconhecimento, essa "harmonia imensa" entre ouvinte e coisa-cantada ultrapassa a decifração do código verbal.
Ou seja, quando o assunto é canção, há algo que acima da utilidade verbal valoriza o modo de emissão da mensagem. Para tanto trabalham a voz, o arranjo, a situação da audição e, sobretudo, a disposição (mesmo que sobressaltada) do ouvinte. O meio - a canção - em si já é a mensagem. Ao comentar sobre a origem da poesia, Nietzsche anota: "Mediante o ritmo, um pedido humano deveria se inculcar mais profundamente nos deuses, depois que as pessoas notaram que a memória grava mais facilmente um verso que uma fala normal; também acreditavam que por meio do tiquetaque rítmico podiam ser ouvidos a distâncias maiores; a oração ritmada parecia chegar mais perto dos ouvidos dos deuses" (Gaia ciência, p. 112).
Deste modo, é no desempenho rítmico da voz de alguém cantado que mora a eficácia da canção. E aliada a isso a competência inata de todo ouvinte em estar com os ouvidos abertos aos convites da poesia. Obviamente, ao descobrirem isso, fez-se do ritmo uma maneira de coagir multidões: um exercício de poder, pedagógico. Mas há que se atentar para aquilo que o ritmo é de "ferocidade do ânimo" incutindo no indivíduo o não querer ser rebanho (escravo), indo na contramão do interesseiro binômio bem e mal, bom e mau: dançar seguindo a cadência do cantor, como um ajuste (terapêutico) na alma.
Ainda de acordo com Nietzsche "Melodia significa, conforme sua raiz, um calmante, não porque seja calmo em si, mas porque seus efeitos acalmam. - não somente nos cânticos rituais, mas também nos cantos profanos mais antigos há o pressuposto de que o ritmo exerce uma força mágica" (p. 112). Por exemplos: a exaustão após uma dança, o cansaço da quarta-feira de cinzas, os instantes após o ritual religioso - o corpo, sendo a alma, encontraria aí, o ajuste necessário. Eis a utilidade do ritmo, do cancionista, da canção, da arte. "Sem o verso não se era nada; com o verso, quase um Deus", anota Nietzsche (p. 113).
É também Nietzsche quem lembra a frase que Aristóteles atribuía a Homero: "Mentem demais os cantores!". Ora, como não encontrar nos versos de "Drama", de Caetano Veloso, na voz de Maria Bethânia, a justa resposta à proposição homérica: "Eu minto, mas minha voz não mente / Minha voz soa exatamente / De onde no corpo da alma de uma pessoa / Se produz a palavra eu / Dessa garganta, tudo se canta / Quem me ama, quem me ama". Repito: É no desempenho rítmico da voz de alguém cantado que mora a eficácia da canção. E a voz não mente, ela indicia a existência de alguém, um par do ouvinte no mundo.
Acredito que já está mais do que sugerido que a máquina de ritmos é o demasiado humano em nós, ouvintes-cantores: a alma - a voz por trás, à frente, dentro da canção. É Gilberto Gil, cancionista que já declarou que "O cérebro eletrônico faz tudo / Faz quase tudo / Mas ele é mudo", quem canta a tal "Máquina de ritmo": "Tão prática, tão fácil de ligar / Nada além de um bom botão / Sob a leve pressão do polegar (...) Apesar do seu computador / Ter samba bom, samba ruim / Se aperto o botão, meu coração / Há de dizer que é samba sim".
Poeta, Gil está brincando com signos entre o coração (máquina orgânica de ritmização da vida) e os equipamentos (cérebros eletrônicos) de armazenamento e potencialização de canção. Isso fica mais evidente quando já nos últimos versos da canção ele evoca: "Moreno, Domenico, Kassin / Assim meus filhos, filhos seus / E Bandos da lua virão se encontrar / Numa praia toda lua cheia pra lembrar / Só pra lembrar / Você e eu". Isso porque os três cancionistas citados, ao lançarem o disco Máquina de escrever música (2000), apresentaram novos modos de usar e fazer canção ao misturar harmonicamente sons sintetizados e acústicos.
Gil fala da passagem do tempo, das necessidades de adequações dos mecanismos de feitura de canção, evoca e revigora também o Bando da lua - como agente cancional lá do início do fazer canção popular no Brasil - para finalizar lançando luz sobre o futuro das canções preservadas no tempo, mais do que guardadas em arquivos digitais, na voz índice do humano. Isso sugere que enquanto houver humano haverá canção, pois sempre será o coração o responsável por dizer se algo é ou não samba.
Comentando sobre as “mitologias tecnicistas”, Fernando Iazzetta anota: “imaginar que a máquina retira o que há de humano na música é esquecer que não há nada mais representativo do que é humano do que as máquinas que fazemos” (Música e mediação tecnológica, p. 25). Para o autor, é preciso analisar a simbiose, não a dependência na relação entre música e tecnologia.
Ao escrever sobre o rock nos anos 80 do século passado, Arnaldo Antunes aponta os sintomas da "crise da canção": "A incorporação do berro e da fala ao canto; o estabelecimento de novas relações entre melodia e harmonia; o reprocessamento e colagem de sons já gravados; os ruídos, sujeira, microfonias; as novas concepções de mixagem, onde o canto nem sempre é posto em primeiro plano, tornando-se, em alguns casos, apenas parcialmente compreensível; a própria mesa de mixagem passando a ser usada quase como um instrumento a ser tocado. Tudo isso altera a concepção de uma letra entoada por uma melodia, sustentada por uma cama rítmica-harmônica. O sentido das letras depende cada vez mais do contexto sonoro" (40 escritos, p. 46).
Para Antunes, o rock, como canção-para-dançar, "parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um estado mais primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança, cumpre sempre uma função vital - religiosa, curativa, guerreira, de iniciação ou para chamar chuva" (idem, p. 47). Nossa competência brasileira na criação de canções para dançar, portanto, nos reposiciona na origem da poesia, do desafogar a alma dos excessos "do medo, da mania, da compaixão, da sede de vingança", como lista Nietzsche (idem). O corpo do ouvinte que dança ao ritmo do cantor quer reviver uma inocência perdida. Individualizado, ele quer se perder na massa. Para sair dela mais único que antes.
Penso nisso enquanto ouço "Iemanjá carioca", do DJ MAM e Aleh (Sotaque carregado, 2012). Misturando sons de guitarras e percussão, orquestra e afrobeat, a canção-para-dançar, porque grávida de sintagmas de elementos afrobrasileiros, convida o ouvinte a mais do que o simples mexer-do-corpo: intenciona-se um estado-de-alma que tangencia o ritualístico ao unir ritos de tradição afro-brasileira com a dança a princípio esvaziada de conteúdo religioso. Rito e techno misturados invocam corpo e ação corporal à primazia primária da celebração: transvaloração da imersão sensual e sensorial.
"No poema primitivo o ritmo retoma, concentra e realça os acentos da linguagem oral", anota Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (p. 82). É exatamente isso que "Iemanjá carioca" faz: unindo os signos da Iemanjá local, íntima do sujeito ("Negra, índia, em casa portuguesa, / A nossa Iemanjá d’Akari oka") e projetando a geografia por onde o ser rege ("Céu aberto, da Floresta da Tijuca, ela vem / Cosme Velho, lá de cima, você pode ver também / Laranjeiras, o Machado de Xangô vai apontar / Pro Catete ou Flamengo, Glória a esse orixá"), a canção figurativiza uma entidade que reina sobre todas as cabeças: "O Rio encontra seu lar / No ventre de Olokum".
"A Iemanjá criada no Brasil, que viajou para o Sul e para o Norte, é outra, embora conserve o título de 'Rainha do Mar'. As vezes é sereia, outras ninfa e recentemente até virgem, identificando-se mais com a Virgem Maria, a tal ponto que suas devotas no Rio ficam ofendidas lendo casos da Iemanjá africana, de grande força sexual", escreve Zora A. O. Seljan em Iemanjá Mãe dos Orixás (p. 15).
A mistura rítmica-harmônica na canção é a cama sonora exata para essa Iemanjá amalgamada, brasileira, carioca: "Filha de Tamoios com a África dos Yorubás", atravessada pela língua portuguesa. Ela, por sua vez, por ser como é, livre, abala o cânone da uniformidade: o fluxo oral joga com o fluxo da melodia reiterativa na tentativa de métrica no texto da letra. O todo cancional resulta na criação de um ambiente sonoro mítico e como Roger Bastide observa: "O mito é anterior ao rito; ele é, primitivamente, uma tentativa de explicação dos fenômenos da natureza, uma primeira cosmogonia, e o rito viria depois, moldando-se na sua estrutura, sobre os temas míticos já preexistentes" (Imagens do Nordeste místico em preto e branco, p. 11-112).
"O ritmo provoca uma expectativa, suscita um anelo. Se é interrompido, sentimos um choque. (...) Todo ritmo é sentido de algo. Assim, o ritmo não é exclusivamente uma medida vazia de conteúdo, mas uma direção, um sentido. O ritmo não é medida, mas tempo original. (...) No ritmo há um 'ir em direção a', que só pode ser elucidado se, ao mesmo tempo, se elucida quem somos nós. (...) Rituais e narrativas míticos mostram que é impossível dissociar o ritmo de seu sentido", escreve Octávio Paz em O arco e a lira (p. 68-70).
É assim, da "harmonia imensa" entre sujeito da canção e ouvinte, que surge o sujeito cancional. Como "diz" o sujeito da canção "Love, love love", de Caetano Veloso: "Eu canto no ritmo, não tenho outro vício / Se o mundo é um lixo, eu não sou / Eu sou bonitinho, com muito carinho / É o que diz minha voz de cantor / Por nosso Senhor". Ou senhora: "Ogunté, Iamassê, Euá / Olossá, Ya, Assabá, / Iemowô, Assessu, Yemojá".

***

(DJ MAM / Aleh)

Filha de Tamoios com a África dos Yorubás
A nossa Iemanjá

Negra, índia, em casa portuguesa
A nossa Iemanjá d’Akari oka

Céu aberto, da Floresta da Tijuca, ela vem
Cosme Velho, lá de cima, você pode ver também

Laranjeiras, o Machado de Xangô vai apontar
Pro Catete ou Flamengo, Glória a esse orixá

O Rio encontra seu Lar
No ventre de Olokum

Beira do Aterro, no mar
Vive mamãe Iemanjá

Ogunté, Iamassê, Euá
Olossá, Ya, Assabá,
Iemowô, Assessu, Yemojá

Itapuana

$
0
0


"Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu primeiro historiador, o rapsodo do décimo segundo livro da Odisseia, não nos diz como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem; para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e, para baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica), 'metade mulheres, metade peixes'. Não menos discutível é sua categoria; o dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ponte ilha do poente, perto da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em Campânia, e deu seu nome à famosa cidade que agora se chama Nápoles, e o geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos que periodicamente eram celebrados para honrar sua memória", anota Jorge Luis Borges em O livro dos seres imaginários (p. 145).
No décimo livro da República, Platão registra que são oito sereias que presidem a revolução dos oito céus concêntricos "No cimo de cada um dos círculos, andava uma Sereia que com ele girava, e que emitia um único som, uma única nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um acorde de uma única escala" (p. 316). E destaca: "Mais três mulheres estavam sentadas em círculo, a distâncias iguais, cada uma em seu trono, que eram as filhas da Necessidade, as Parcas, vestidas de branco, com grinaldas na cabeça - Láquesis, Cloto e Átropos - as quais cantavam ao som da melodia das Sereias, Láquesis, o passado, Cloto, o presente, e Átropos o futuro" (idem).
Ora, já na Odisseia, Ulisses narra o famoso canto (porque contém a fama - reputação, glória e notícia - do ouvinte) como aquele que detém o ouvinte justamente porque guarda o passado (a guerra de Tróia), o presente (os périplos no retorno à Ítaca) e o futuro (o orgulho e a glória). Mas o que chama atenção nas palavras de Platão, diferenciando-se das de Ulisses, é que não são as sereias que cantam, mas 3 mulheres "ao som da melodia das Sereias".
Importa anotar que três era a medida antiga de contar os extremos para os gregos. Platão chama imitador ao autor (o pintor) daquilo que está três pontos afastado da realidade, atrás dos artífices da cama, por exemplo, Deus e o carpinteiro.
Retornamos ao tema da imitação, tão caro a Platão. As mulheres, neste caso, imitariam o canto sirênico. No entanto, acrescentado de palavras audíveis aos ouvidos comuns. E isso muda tudo, essas mulheres-poetas são a mediação entre o inaudível e o público. E assim o canto mudo das divindades chega ao humano.
Ou seja, Platão confunde Musa (cujo canto está reservado ao poeta) e Sereia (de canto audível para ouvidos humanos). De modo enviesado, ele sugere que as três mulheres, deste modo, poderiam ser o rascunho da neo-sereia que tenho analisado aqui: seres reais que, longe-perto, representam o mito, a voz que resume em um relato verídico (das sereias) o relato absoluto (das musas). E para por aqui a (quase) semelhança entre Platão e a neo-sereia.
Para a defesa que faço do dispositivo de análise que denomino neo-sereia, o cancionista não instaura o mau na alma do ouvinte, até porque nosso entendimento das relações interpessoais estão além (ou aquém) das noções/ideias estancadas de bem e de mal, visa o elogio dos sentidos, da "música da vida", acessada pela gaia ciência, que indistigue racionalmente o que é maior e o que é menor, o que é bom e o que é mau.
A neo-sereia, a sereia nossa contemporânea, por ser cancionista, condensa as filigranas das sereias homéricas (o canto dos três tempos), platônicas (o canto do canto das musas e das sereias; fingidoras da dor que deveras sentem), da mãe d’água de José de Alencar - “moça de formosura arrebatadora; tinha os cabelos verdes, os olhos celestes, e um sorriso que enchia a alma de contentamento” (O tronco do ipê); e das demais teorias da potencialidade da emissão vocal. Uma categoria tropical, afro-americana, a neo-sereia, ao contrário do que faz o idioma inglês, não distingue a sereia clássica (siren) das que têm cauda de peixe (mermaids). É no amálgama, diria Jorge Mautner, que reside a contribuição brasileira para o mundo.
É deste turbilhão espumoso que sai "Itapuana", de Arnaldo Antunes e Cézar Mendes, a sereia das três raças, personagem cantada por Arnaldo Antunes (Saiba, 2004). Itapuana se insere no panteão das qualidades de Iemanjá: una e múltipla, sereia transplantada e atropofagizada para o Brasil, Cuba, Uruguai. "En Brasil, Yemanjá es inspiradora de ritos públicos espectaculares que en años reciente dejaron de ser prerrogativa de Bahía y Río para extenderse a la populosa y cosmopolita São Paulo. Allí la sirena es rubia y, asociándola a la Virgen María, se le rinde culto el día de la Inmaculada Concepción. Pero es notorio que Yemanjá he elegido residir en Bahía se San Salvador, y precisamente en las aguas profundas de la laguna de Abaeté en Itapuã" (Meri Lao, em Las Sirenas, p. 118-119).
Ora, basta atentar para a letra de "Itapuana" para identificar nela uma proliferação dos significantes desta Yemanjá de Itapoã. Tendo o nome da rainha das águas sido obliterado no título, substituído por um nome de derivação feminina Tupi (Itapuã: pedra que ronca), é na última estrofe, no último verso que encontramos a revelação neo-barroca da personagem: "Quantos risos misturei ao som das águas / Quantas lágrimas de amor molhei no mar / No mais íntimo / Dos mais íntimos / Dos lugares desse lugar / Lugar público / Colo e útero / Amoroso de Yemanjá".
Íntimo e público, porque colo e útero de mãe, Itapuana é o espaço criado pelo sujeito da canção para servir de cenário à sereia que mora no Abaeté onde uma lagoa escura é arrodeada de área branca. E como não reconhecer Itapuana na Iemanjá-Sereia-Grande-Mãe de Rubens Carybé, guardada no Museu Afrobrasileiro, em Salvador-BA.
Para cantá-la, Arnaldo Antunes, o cancionista do barulho, do berro, da urgência do agora, baixa dos tons e entoa a la Dorival Caymmi. O sujeito cancional produzido aqui é justificado na quase canção de ninar ancorada na melodia de cordas (viola, violão, guitarra) e teclados. Tudo convida o ouvinte a admirar a beleza nunca desperdiçada - existe, sozinha - de Itapuã, em seu eterno retorno - de novo, de novo para sempre esta pedra roncará, aurora em fim de tarde.
A título de curiosidade, vale lembrar, portanto, que não é à toa que Dona Flor tem sua primeira vez sexual com Vadinho em Itapuã: “Um amigo endinheirado, Mário Portugal, solteiro e estróina naquele tempo, emprestou a Vadinho oculta casinhola para os lados de Itapoã. A viração desatava os cabelos lisos e negros de Flor, punha-lhe o sol azulados reflexos. No barulho das ondas e no embalo do vento, Vadinho arrancou-lhe a roupa, peça a peça, beijo a beijo. (...) Rompeu a aleluia sobre o mar de Itapoã, a brisa veio pelos ais de amor, e, num silêncio de peixes e sereias, a voz estrangulada de Flor em aleluia; no mar e na terra aleluia, no céu e no inferno aleluia!”, registra Jorge Amado na décima segunda parte do famoso romance.
Mas é em versos como os da estrofe que diz "Nas manhãs de Itapuã que o vento varre / Os coqueiros já conhecem as canções / Repetidas ou / Repentinas vêm / Consolar o meu coração / As vontades vêm / As saudades vão / Amanhece mais um verão" que se encontra a ponte entre cantor e ouvinte, mergulhado no banho tépido da voz grave, da água morna. O sujeito da canção compartilha com o ouvinte a memória das águas que consolam. Memória cancional: de Dorival Caymmi - "Coqueiro de Itapuã, coqueiro / Areia de Itapuã, areia / Morena de Itapuã, morena / Saudade de Itapuã me deixa / Oh vento que faz cantiga nas folhas / No alto dos coqueirais / Oh vento que ondula as águas / Eu nunca tive saudade igual / Me traga boas notícias daquela terra toda manhã / E joga uma flor no colo de uma morena de Itapuã" - a Caetano Veloso - "Itapuã, quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam um vento a mim, assim: Caymmi (...) Eu cantar-te nos constela em ti / Eu sou feliz". Passando por Vinícius de Moraes e Toquinho: "É bom / Passar uma tarde em Itapuã / Ao sol que arde em Itapuã / Ouvindo o mar de Itapuã / Falar de amor em Itapuã".
Caymmi. “A marina caymmiana é mestiça. Nela podemos detectar um distante e vago resíduo ameríndio, a presença difusa dos bantos, a predominância de elementos portugueses e iorubanos. Tudo transfigurado, naturalmente. E esta mestiçagem se expressa desde já no trato caymmiano com a mitologia baiana, como se ouve numa composição como ‘A lenda do Abaité’. Todos sabem que esta lagoa se tornou famosa não apenas por sua beleza, mas também pelos inúmeros afogamentos nela ocorridos. Caymmi soube reter e assentar, em sua poesia, esta mescla de encanto e perigo. (...) A lagoa ainda hoje atemoriza, mas os ipupiaras de Itapuã foram esquecidos. Ou antes, sobrevivem irreconhecivelmente num misto de Iemanjá, a filha de Olokum e deusa dos egbás, e de sereia branca da Europa, dedicada ao canto e ao sexo. Houve uma identificação entre a orixá nigeriana e a sereia, esta por sua vez já confundida com a mãe-d’água, que ao que parece era originalmente uma cobra. O mito é, portanto, de extração euro-afro-ameríndia. E esta bricolagem mitológica vai se refletir na criação estética baiana.” (Antonio Risério, Caymmi: uma utopia de lugar, p. 78-80).
Ora, inserindo-se como mais um entre os mitemas (cantos) que compõem o mito de Itapuã, podemos intuir que a personagem-canção Itapuana é a morena de Itapuã, é a lua de braços morenos, é a sereia do sujeito da canção (que canta ao som da melodia dela, tal e qual as mulheres descritas por Platão), é a energia motora da canção. Ela é aquela que volta e manda a saudade embora a cada lembrança cantada do lugar: "Itapuã, tuas luas cheias, tuas casas feias / Viram tudo, tudo, o inteiro de nós / Nosso sexo, nosso estilo, nosso reflexo do mundo / Tudo esteve em Itapuã", diz o sujeito criado por Caetano.
Não podemos deixar de lembrar que as "Lendas do Abaeté" foram enredo da G.R.E.S. Mangueira em 1973. Os versos de Jajá, Preto Rico e Manuel, cantados em coro durante o desfile dizem: "Oh! Que linda noite de luar / Oh! Que poesia e sedução / Branca areia, água escura / Tanta ternura no batuque e na canção / Lá no fundo da lagoa / No seu rito e sua comemoração / Foi assim que eu vi / Iara cantar / Eu vi alguém mergulhar / Para nunca mais voltar".
A título de curiosidade, importa anotar que segundo contam Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas, no livro Samba de enredo, história e arte (2010, p. 68), só 1966 um orixá, "no desfile do segundo grupo", é mencionado pela primeira vez em um samba: "Apoteose ao folclore brasileiro", do G.R.E.S. São Clemente. O orixá, claro, foi Iemanjá: "(...os negros / Ornamentando a natureza / Na pescaria do xareu / Que simboliza a típica beleza / Das baianas que dançam / Com grande alegria / Pra rainha iemanja / Nas noites de luanda na bahia".
Tudo em “Itapuana” é impressão descritiva. Sobre a relação com a lua, "os minas diziam que de dia ela [Yemanjá, e acredito que chegamos ao acordo de que Itapuana é uma qualidade de Yemanjá] estava na terra e de noite no mar. Na água ela é uma sereia. A Iemanjá mais velha tem escamas nacaradas da cintura para baixo, rabo de peixe, os olhos brancos, saltados, redondos, muito abertos. 'As pupilas negras, pestanas como agulhas e os peitos muito grandes'", anota a pesquisadora Lydia Cabrera, em Iemanjá e Oxum (p. 40).
“O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha ideia”, diz o Riobaldo de Guimarães Rosa. De todos - "é sua / é minha" -, a beleza de ser mimado, ninado e cantado por "canções repetidas ou repentinas" a cada saudade consola o coração do sujeito: "as vontades vêm / as saudades vão" ao som do mar, da pedra que sempre roncará - "cada dia uma nova eternidade" e esta certeza da beleza é a fonte do canto - a melodia que leva o sujeito a cantar, a ser artífice-de-si, posto que "no calor do sol o céu da boca salga / e o mar na alma acalma o caminhar".

***

Itapuana
(Arnaldo Antunes / Cézar Mendes)

Quando o dia vem varando a alvorada
Antes mesmo de nascer a luz do sol
A beleza nunca é desperdiçada
Existe
Sozinha

Quando a água morna molha nossas pernas
E a areia massageia nossos pés
A beleza sempre é compartilhada
É sua
É minha

Nas manhãs de Itapuã que o vento varre
Os coqueiros já conhecem as canções
Repetidas ou
Repentinas vêm
Consolar o meu coração
As vontades vêm
As saudades vão
Amanhece mais um verão

No calor do sol o céu da boca salga
E o mar na alma acalma o caminhar
Pra que haja areia sal e água e alga
As ondas
Não voltam

Cada dia uma nova eternidade
Para sempre aquela pedra roncará
A aurora se transforma em fim de tarde
De novo
De novo

Quantos risos misturei ao som das águas
Quantas lágrimas de amor molhei no mar
No mais íntimo
Dos mais íntimos
Dos lugares desse lugar
Lugar público
Colo e útero
Amoroso de Yemanjá

Exagerado

$
0
0


"A canção popular é produzida na intersecção da música com a língua natural. Valendo-se de leis musicais para sua estabilização sonora, a canção não pode, de outra parte, prescindir do modo de produção da linguagem oral. Daí a sensação de que um pouco de cada nova obra já existia no imaginário do povo, senão como mensagem final ao menos como maneira de dizer", anota Luiz Tatit em Musicando a semiótica (p. 87).
Tendo isso em mente, podemos dizer que, se é um erro falar em um "jeito certo" de cantar essa ou aquela canção, não podemos esquecer que cada mensagem "pede" por um jeito mais “apropriado” de emissão vocal. Ou seja, se para que ocorra a eficácia da intenção na emissão de uma mensagem o que é dito precisa estar em sintonia com o modo de dizer, e é assim, por exemplo, que identificamos um ator canastrão, na canção acontece de igual modo. "A própria credibilidade enunciativa implicada nas execuções vocais depende do êxito da apreensão simultânea do modo de produção da linguagem oral em seu interior" (Tatit, idem, p. 88).
É no reconhecimento, pelo ouvinte, de que aquilo só poderia ser dito/cantado daquela forma que reside o vigor da canção: na integração entre letra e melodia na voz; na "equivalência entre sintaxe e ritmo", anota Tatit (idem, p. 87). Dito de outro modo, se não há um único "jeito certo" de dizer/cantar determinada mensagem, há um acordo íntimo e invisível entre emissor e ouvinte para que este reconheça na fala/canto daquele a credibilidade e o efeito de real necessários à fruição e, quiçá, ao entendimento. "Nossa vasta experiência com a linguagem oral [provoca] um efeito inevitável de 'realidade' enunciativa: alguém diz alguma coisa aqui e agora" (Tatit, idem).
Vem daí, e da memória cancional do ouvinte, toda a problemática e os perigos que residem na mudança de ritmo, de frequência melódica de uma canção cuja estabilidade do conteúdo na forma, e vice-versa, já havia sido engendra por um cancionista. Volto ao exemplo da versão de "Chuva, suor e cerveja" (Caetano Veloso) na voz de Simone (Quatro paredes, 1974; Em boa companhia, 2010).
Tendo sido gravada por Caetano Veloso (Muitos carnavais, 1989) em formato de frevo, isto é, tematizando a ação de quem se movimenta durante uma folia carnavalesca, a canção recebe da cantora Simone uma versão passionalizada, repleta de alongamentos vocálicos incompatíveis com aquilo que está sendo dito/cantado. Senão vejamos: como ouvir os versos "Não saia do meu lado / Segure o meu pierrot molhado / E vamos embolar ladeira abaixo / Acho que a chuva a gente a se ver / Venha veja deixa beija seja / O que Deus quiser" sem visualizar o ato plasmado na letra?
É certo que Simone descarta a última estrofe que diz "A gente se embala se embola se embola / Só para na porta da igreja / A gente se olha se beija se molha / De chuva suor e cerveja", ápice da ação tematizada, desprezando assim o título e o invólucro do todo cancional. Mas isso não anula a desestabilidade entre a substância sonora e o conteúdo que ela carrega, já que, como sugerimos, o ato de conjunção entre corpo e folia atravessa toda a canção.
A ênfase depositada pela letra nos aspectos da aproximação  entre os foliões (sujeito da canção e o outro a quem ele se dirige) não se sustenta na cama sonora dos alongamentos vocálicos da versão de Simone, estando as personagens no meio da folia, aproveitando ("segure o meu pierrot molhado"), juntos ("não saia do meu lado"), a festa.
"Quem canta sabe que se não recuperar os conteúdos virtualizados na composição, durante o período da execução, deixando transparecer uma inegável cumplicidade com o que está dizendo (o texto) e com a maneira de dizer (a melodia), simplesmente inutiliza o seu trabalho e se desconecta do ouvinte" (Tatit, idem, p. 89). Não queremos negar que há quem, pela paixão, conecte-se à versão de Simone, mas nosso trabalho aqui é analisar a integração da letra, da melodia e da voz: o ritmo evocado pela sintaxe.
É por isso que chamo à discussão a versão de Arnaldo Antunes (Paradeiro, 2001) para "Exagerado" (Cazuza, Ezequiel Neves e Leoni). Enquanto a versão de Cazuza investe na mensagem da letra usando-a como uma cantada de conquista e sedução, efetuando o balanço dos sentidos do ouvinte pelo uso do rock, a versão passional e grave de Arnaldo cria um sujeito cancional que parece consciente de já ter conquistado o outro e canta para a manutenção do desejo entre os dois.
A inserção de sutis "ruídos vespertinos do Candeal (BA)" amplia a certeza deste sujeito que recusa a rua – ao contrário do sujeito urbano da versão de Cazuza – e quer ficar infinitamente unido ao outro, dentro da bolha afetiva criada na canção de amor: o canto passional não permite que os sons de fora estourem a bolha e atinjam os sons de dentro.
Ao trocar os dispositivos melódicos do rock, com sua tendência à valorização de personagens e dos rituais dançantes ancorados nos ataques consonantais, na segmentação da melodia e na marcação dos acentos, pela passionalização, empenhada no estado psíquico, tais como a solidão e a contemplação, através da ampliação da frequência e duração das vogais, Arnaldo Antunes investe em versos como: "Nossos destinos foram traçados / Na maternidade (...) Jogado aos teus pés / Eu sou mesmo exagerado / Adoro um amor inventado". E reinventa a canção.
A voz de Arnaldo e o violão de Cézar Mendes possibilitam uma nova possibilidade de ouvir uma "mesma" mensagem, uma mensagem, diga-se de passagem, impregnada das energias da versão dançante de Cazuza fortemente disseminada na cultura cancional. Note-se, como exemplo disso, que amparado por sua versão, Cazuza recebeu o epíteto de "poeta exagerado".
Para o bem da verdade, a versão de Cazuza já indicia aquilo que Arnaldo realiza. Trabalhando entre acelerações e desacelerações, naquilo que comumente denominamos pop-rock, balada romântica, o sujeito de Cazuza sugere paixão, através da atenção despertada pelo primeiro verso: "Amor da minha vida". Arnaldo capta tais índices e investe neles.
Para Luiz Tatit (idem, p. 92-93), "ao controlar a velocidade da voz que fala, atribuindo-lhe uma duração no interior da voz que canta, o cancionista revela o que R. Barthes denominou 'grão da voz', ou seja, a exata intersecção entre língua e música: a condição ideal para o efeito de verdade da obra". Deste modo, Arnaldo transfere o exagero da emissão vocal acelerada do rock para a letra de mensagem exagerada de um sujeito que diz feliz e suplicante: "Eu nunca mais vou respirar / Se você não me notar / Eu posso até morrer de fome / Se você não me amar".
Ao final, se na versão de Cazuza (1985), e mesmo na versão de Ney Matogrosso (Vivo, 1999), o ouvinte “presta mais atenção” à gestualidade vocal visceral, na versão de Arnaldo Antunes é a letra, ou melhor, o modo visceral como o sujeito se entrega na letra, que se ilumina e concentra a atenção. A produção oral de Arnaldo presentifica um sujeito em ritmo narrativo exageradamente jogado aos pés do outro. E assim entra em sincretismo com o outro, agora ele: sujeito cancional e da canção – exagerado: gerado no excesso.



***

(Cazuza / Ezequiel Neves / Leoni)

Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade

Paixão cruel desenfreada
Te trago mil rosas roubadas
Pra desculpar minhas mentiras
Minhas mancadas

Por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais

Eu nunca mais vou respirar
Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome
Se você não me amar

Por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais

Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor inventado
Viewing all 280 articles
Browse latest View live