Quantcast
Channel: Lendo Canção
Viewing all 280 articles
Browse latest View live

Oriki de Iemanjá

$
0
0


"Caraíba: Feiticeiro entre os índios brasileiros. Eram os cantadores profissionais da tribo e iniciavam os cantos religiosos do cerimonial, bem como a cura dos doentes", registra Mário de Andrade no seu Dicionário musical brasileiro (1989, p. 114). Se levarmos em consideração a ideia de que "a música cura", como a cantora Gal Costa disse em entrevista ao programa Viva voz(07/02/2013), e que a cura significa, tal e qual atesta o dicionário, "tratamento contra uma doença; recuperação da saúde; curativo; remédio; solução para algo, regeneração", podemos inferir que a Revolução Caraíba divulgada por Oswald de Andrade já vem acontecendo há tempos.
Neo-sereias, de instinto caraíba, nossos cancionistas desempenham no mundo urbano contemporâneo a função do feiticeiro que cura e inicia o ouvinte. Ao equilibrar na voz um texto carregado de significados e uma melodia exata para figuratizar tal mensagem, o cancionista desperta no ouvinte o desejar de um desejo latente, mas até então não decifrado. O cancionista neo-sereia é decifrador de desejos.
"Só podemos atender ao mundo orecular", anota Oswald no "Manifesto antropófago" (A utopia antropofágica: 2011, p. 69). Ao amalgamar "auricular" - do ouvido - e "oracular" - do oráculo - no neologismo "orecular", Oswald investe no sentido da audição, da escuta como meio de acesso às sabedorias oferecidas pela gaia ciência. O oráculo fala antropofagicamente pela orelha, esta é o meio e a mensagem. É assim que "O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo" (idem, p. 69). Pensamos pelo ouvido, daí que "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago". (idem, p. 67).
É o instinto caraíba que promove a transformação do patriarcado em matriarcado, do tabu - proibições às tradições orais tidas como menores - em totem, em guias de iluminação: consagração do corpo sobre o intelecto - "Nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós (...) A magia e a vida (...) Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas" (idem, p. 69-71).
É na canção popular, espaço fértil para o canto das várias questões do Humano, feita para ninar - no mais maternal que este termo contem - o desejo do ouvinte, que reconhecemos a manifestação dos instintos, da liberdade dos prazeres vitais. Dito de outro modo: "Transformação permanente do tabu em totem" no momento em que o ouvinte se resolve durante a escuta de uma frase cancional. Cantar é afirmar-se. Ser cantado também.
Essa transformação utópica, renunciando a lógica e a metafísica patriarcais, dá ânimo para que o indivíduo sobreviva na civilização. Foi assim nas aldeias dizimadas, nas senzalas, nos porões dos navios negreiros "ouvindo o batuque das ondas / Compasso de um coração de pássaro / No fundo do cativeiro / É o semba do mundo calunga / Batendo samba em meu peito / Kawo Kabiecile Kawo / Okê arô oke (...) O Batuque das ondas / Nas noites mais longas / Me ensinou a cantar", como canta o sujeito de "Yá Yá Massemba" na voz de Maria Bethânia. Cantar é resistir.
Para Oswald esta revolução se dá quando sobrepomos o selvagem ao civilizado; substituímos o verbo "to be" pelo substantivo "tupi"; e transformarmos os tabus da cultura escrita em totens de uma cultura primitiva, sem recalques, livre das neuroses que fazem o sujeito cantar "Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo / Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo", em "Neguinho" na voz de Gal Costa.
Trata-se de transvalorizar a cultura do conquistador, em nome da antropofagia. "É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci", anota Oswald (idem, p. 72). Ou seja, a valorização da mãe já existente e bastante, do matriarcado sobre o patriarcado. "Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes", Oswald (p. 71).
No Brasil, Guaraci tem uma parceira: Iemanjá, com quem divide a maternidade dos viventes, dos que não separam o espírito do corpo. Iemanjá "é o orixá dos Egbá, uma nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe ainda o rio Yemoja. As guerras entre nações iorubás levaram os Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá, no início do século XIX. Evidentemente, não lhes foi possível levar o rio, mas, em contrapartida, transportaram consigo os objetos sagrados, suportes de axé da divindade.", anota Pierre Verger em Orixás (1981, p. 190).
Apesar de complexa, não é difícil imaginar a transplantação de Iemanjá para o Brasil, onde se tornou a mãe de todos os orixás e cujas homenagens - vestir-se de branco e derramar bebida para o orixá - se disseminou pelas várias religiões, e pelos não religiosos. "Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada", diria Oswald no "Manifesto antropófago" (idem, p. 73).
Foi também movido pelo instinto caraíba que Antonio Risério transcriou alguns orikis para o livro Oriki orixá (1996). Amparado por textos teórico-ensaísticos, Risério oferece ao público brasileiro tão íntimo afetivamente à língua iorubana uma oportunidade rara e fundamental de contato com este gênero da linguagem oral.
"O oriki-nome é um epíteto. O oriki-poema é, basicamente, um conjunto de epítetos". (RISÉRIO: 1996, p. 40). Vocais, "orikis são emitidos para ninar crianças, receber visitas, celebrar deuses; ressoam, também, em batizados, noivados e funerais; comparecem, ainda, em cumprimentos palacianos, batalhas e festivais" (idem, p. 41). "Em meio a esses diversos tipos de oriki, destacam-se, sem dúvida, os orikis de orixá, que são figurações concentradas (e não raro enigmáticas) dos deuses do panteão nagô-iorubana" (idem, p. 41).
Risério chama atenção ainda para o fato que ao emitir um oriki o emissor é movido e tomado por uma "densidade energética", o poder da palavra vocalizada é posto em circulação cheio de "respeito e receio". Não há disposição rígida de métrica ou linearidade no oriki, mas o padrão orgânico do desejo de sagrar o encontro entre emissor e orixá. Portanto, não há enredo e/ou narrativa lógica, mas a justaposição paralelística anafórica de escolhas afetivas de epítetos. "O que vemos no oriki é justamente isso: o giro hiperbólico da palavra - vale dizer, uma retórica do exagero no plano referencial do discurso. (...) Da imagem à metáfora, o oriki aparece então como uma prática poética classificável, em termos poundianos, como fanopeia - 'a casting of images upon the visual imagination'." (idem, p. 45).
Da tradição oral, emitido para curar o emissor, o oriki é transmitido entre gerações através de reiterações de unidades estruturais a fim de manter aceso o frevo-axé. É assim que, mesmo mantendo tais estruturas nucleares, os orikis vão se adaptando a contextos e necessidades por meio da absorção intertextual movida pelo afeto do emissor. Obviamente, a categoria autor está suspensa, ou melhor, posta no coletivo, na rotatividade do domínio público. "Oriki: ideograma, objeto sígnico construído via sintaxe de montagem, assemblage verbal fundada no princípio da parataxe. Oriki: fanomelopeia intertextual", conclui Risério (idem, p. 54).
Entre os orikis transcriados por Antonio Risério está o "Oriki de Iemanjá": "Iemanjá que se estende na amplidão / Aiabá que vive na água funda / Faz a mata virar estrada / Bebe cachaça na cabaça / Permanece plena em presença do rei. / Iemanjá se revira quando vem a ventania / Gira e rodopia em volta da vila. / Iemanjá descontente destrói pontes. / Come na casa, come no rio. / Mãe senhora do seio que chora. / Pêlo espesso na buceta / Buceta seca no sono / Como inhame ressequido. / Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa. / Velha dona do mar. / Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei.  / Descansa qualquer um em qualquer terra. / Cá na terra, cala — à flor d’água, fala."
Como não reconhecer neste oriki estruturas que estão no nosso consciente coletivo? E é captando tais sensações que o grupo Axial (Axial, 2004) transcria verbivocalmente o oriki, recoloca-o na voz. Com a sonoridade autêntica que é peculiar ao grupo formado por Sandra Ximenez (voz e teclado), Felipe Julián (baixo e computadores), Leonardo Muniz Corrêa (saxofones e clarinete) e Yvo Ursini (guitarra e eletrônicos), o Axial religa a prática religiosa ao círculo comunitário da canção mediatizada.
O grupo Axial amplia no arranjo melódico o clima religioso do oriki, através de uma ambiência sagrada orgânica e sintetizada. Claro que não falamos aqui de religião, mas de vida, posto que, assim como acreditamos tenha sido na Grécia arcaica, a vida iorubana não se distingui da vivência religiosa, mística. "Movendo-se num universo religioso, os africanos possuem múltiplos templos e uma conduta religiosa multifária. O próprio iniciado na esfera do sagrado é, ele mesmo, um templo vivo do divino. (...) A natureza não é vazia. Seus objetos e fenômenos estão carregados de significância religiosa. De vibrações especiais", anota Risério (idem, p. 61).
Importa destacar que o grupo não vocaliza o oriki completo tal e qual proposto por Risério. O grupo investe no equilíbrio entre a palavra cantada e a palavra falada através do amor materno, do não sensual da Iemanjá africana de grande força sexual. Deixa de fora trechos como "Aiabá que vive na água funda / Faz a mata virar estrada / Bebe cachaça na cabaça / (...) / Pêlo espesso na buceta / Buceta seca no sono / Como inhame ressequido". E acrescenta novos epítetos: "(Cada tua filha, uma ilha / Pétala n’água salgada / Lágrima cristalizada.)". Ou seja, a ênfase é mesmo na relação mãe-filha, ou melhor, na cura promovida pelo mar, domínio da mãe, na filha "pétala n'água salgada". Deste modo, se a mãe tem seios fartos de onde jorram águas (salgadas) de cura, a filha é a "lágrima [água salgada] cristalizada".  
O que temos, portanto, é um novo oriki, ligado àquele, mas renovado, adaptado, transcriado, recompondo aquilo que Risério identifica no âmbito iorubá tradicional: "uma rotatividade de unidades verbais numa textualidade descentrada" (p. 53). E assim, "muda o mundo, mudam os deuses, mudam os textos que tematizam/condensam as personalidades e peripécias das personagens extra-humanas, mudam as vias de circulação textual" (p. 171). Do mesmo modo que a revolução caraíba vai se disseminando ciclicamente, perenemente na cultura, através da vocalização sirênica dos cancionistas. E é quando estes se transmutam em feiticeiros promotores da cura do ouvinte que surge a neo-sereia.

***

Oriki de Iemanjá
(Sandra Ximenez / Antônio Risério)

Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa.
Velha dona do mar.
Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei.
Descansa qualquer um em qualquer terra.
Cá na terra, cala – à flor d’água, fala.

(Cada tua filha, uma ilha
Pétala n’água salgada
Lágrima cristalizada.)

Não tenho medo da vida

$
0
0
"Na unicidade que se faz ouvir como voz, é um existente encarnado - ou, preferindo-se, um 'ser-aí' na sua radical finitude - que se faz ouvir aqui e agora. A esfera do vocálico envolve o plano da ontologia e o vincula à existência de seres singulares que se invocam mutuamente em um dado contexto. Desde a cena materna, a voz manifesta o ser único de cada ser humano e o seu espontâneo comunicar-se segundo os ritmos de uma relação sonora. Nesse sentido, o horizonte descortinado pela voz, ou seja, aquilo que queremos chamar de ontologia vocálica da unicidade opõe-se peremptoriamente às várias ontologias dos entes fictícios que a tradição filosófica, ao logo de seu desenvolvimento histórico, nomeia a cada vez como 'homem', 'sujeito', 'indivíduo'", anota Adriana Cavarero em Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal (2011, p. 202).
"A vida é somente um dom independente de quem / Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som / A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar", canta Gilberto Gil ("Não tenho medo da vida", Fé na festa, 2010). Os versos de Gil exemplificam as palavras de Cavarero. Ou seja, independente do indivíduo, a vida existe, mas o indivíduo só existe na vida - só vive - quando se vocaliza, quando é "capaz de gritar seu nome, alto e bom som". De nada adianta o "dom da vida" se o indivíduo não souber usá-lo.
Aqui entra em jogo a complexa e sensível diferença entre Vida e Viver. Canta Gil: "Não tenho medo da vida, mas, sim, medo de viver / Eis a loucura assumida, você há de imaginar / É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci / Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar / Viver tornou-se o dever de me desembaraçar". A vida independe da vontade, do desejo. Viver exige ação, intervenção - eis o medo do sujeito da canção.
"Quem já passou por essa vida e não viveu / Pode ser mais mas sabe menos do que eu / Porque a vida só se dá pra quem se deu / Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu", canta Toquinho, fazendo eco às aflições do sujeito cantado por Gilberto Gil. Assim como o sábio jagunço Riobaldo: "Viver é perigoso, seu moço!". "A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor", canta Gil em tom que performatiza um sujeito cancional aparentemente cansado de lutar em ser "por mais distante, um errante navegante" na Terra.
É deste modo que "Não tenho medo da vida" é espelho de outra canção de Gil: "Não tenho medo da morte". Espelhamento que se reflete também na estrutura formal das duas canções: quatro quintetos, com 15 sílabas poéticas em cada verso, que vocalmente se subdividem para formar redondilhas (7 versos) espiralando no campo da melodia o pensamento do sujeito em ato de canção.
"Não tenho medo da morte / Mas sim medo de morrer / Qual seria a diferença / Você há de perguntar / É que a morte já é depois / Que eu deixar de respirar / Morrer ainda é aqui / Na vida, no sol, no ar". Em ambas, o que parece amedrontar o sujeito é a possibilidade de uma ação errada. Por entender-se interligado à engrenagem que condensa todos os outros viventes, o sujeito teme a dor implícita ao viver e ao morrer - verbos do círculo infinito, do eterno retorno.
A voz de Gilberto Gil é a dobradiça entre as duas instâncias do (não) existir. Gil cria a dobradiça ao compor as duas canções colocando os dois sujeitos diante do espelho, equalizando a responsabilidade do vivente diante da vida e da morte. Se em "Não tenho medo da morte", Gil canta "A morte já é depois / Já não haverá ninguém / Como eu aqui agora / pensando sobre o além / Já não haverá o além / O além já será então / Não terei pé nem cabeça / Nem fígado, nem pulmão / Como poderei ter medo / Se não terei coração?", em "Não tenho medo da vida" canta "A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar".
Ou seja, não há como fugir da Vida e da Morte. Já para o viver e o morrer há o canto, a voz que sendo instante-já coloca o sujeito cantante sempre além, na busca permanente de alcançar a altura exata da nota. É na canção, na voz de alguém cantando, no fazer da vida uma obra de arte que o tom é conquistado. E vida e viver se ajustam. Assim como morte e morrer. Os sujeitos criados por Gil sugerem isso ao citar os elementos cabeça, pulmão, coração e tom, nota, ponto. Elementos presentes na mecânica cancional. Ao misturá-los e elegê-los como signos do viver e morrer, os sujeitos das canções recompõem destinos, pois interferem no modo tradicional de ser e estar no mundo. "O pensar quer estar fora do tempo, faz mil conexões de uma só vez e coloca seus objetos em um presente eterno. (...) Pelo contrário, o falar é sempre vinculado ao tempo: não sabe para onde vai e depende da imprevisibilidade do que irão dizer os interlocutores", anota Cavarero (p. 203).
Para Cavarero, "o primeiro passo para liberar a voz de seu gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar" (idem, p. 203). Ora, é exatamente isso que o sujeito da canção faz ao destacar que "A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar". As duas perspectivas se unem à de Oswald de Andrade quando escreve: "Só podemos atender ao mundo orecular", no "Manifesto antropófago".
Em "retiro espiritual", os sujeitos da canção "Não tenho medo da vida" e o da canção "Não tenho medo da morte" estão em plena ação de atendimento deste "mundo orecular", condensador do auricular e do oracular. "A dor na carne e na alma, a calma a se propagar / A durar dia após dia, a varar noite, a dormir / A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar / A amanhecer de novo e de novo um novo dia / Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar", canta.
Gilberto Gil sugere um "pensar com os pulmões", pois observa que o modo tradicional de pensar não dá conta das angústias que atravessam os sujeitos das canções. "O pensador, incluído o Sócrates platônico, conhece antecipadamente os próprios pensamentos. (...) Pelo contrário, o falar é sempre vinculado ao tempo: não sabe para onde vai e depende da imprevisibilidade do que irão dizer os interlocutores" (CAVARERO, idem). O medo de não saber para onde vai é o motor das canções. E é cantando que os sujeitos cancionais vivenciam que "ao contrário do que pensa Platão, inspirador da metáfora sobre a voz da alma, o falar não é um pensar que se exprime em voz alta, ou seja, um pensamento vocalizado, um sucedâneo acústico do pensar. A fenomenologia do falar possui um estatuto autônomo no qual a relacionalidade de bocas e ouvidos ocupa o primeiro plano" (idem, p. 204).
Ao ser ouvido, o sujeito da canção se transmuta em sujeito cancional fazendo com que emissor e ouvinte se encham de vida, de sopro vital vindo dos pulmões daquele. "Cantar, é mover o dom / do fundo de uma paixão / Seduzir, as pedras, catedrais, coração / Amar, é perder o tom / nas comas da ilusão / Revelar, todo o sentido", canta Djavan. Cantar, amar, dom, tom, seduzir, revelar, ilusão, sentido, elementos que se agrupam na canção, na voz de alguém cantando, trazendo a vida aqui, na voz, no auxílio mútuo e luxuoso entre vida e arte cantado pelos sujeitos de Gilberto Gil.
E assim, "a função despersonalizante do pronome eu (...) é anulada pela unicidade inconfundível da voz. O som vence a generalidade do pronome" (CAVARERO, p. 205). Posto que "a voz pertence ao vivente, comunica a presença de um existente em carne e osso, assinala uma garganta, um corpo particular" (idem, p. 207). E só ele, ou melhor, só eu - o ser vivente, este "eu" que se anuncia e presentifica - posso "chorar quando estou triste (...) eu falo e ouço, eu penso e posso".

***

Não tenho medo da vida
(Gilberto Gil)

Não tenho medo da vida, mas, sim, medo de viver
Eis a loucura assumida, você há de imaginar
É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci
Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar
Viver tornou-se o dever de me desembaraçar

A vida é somente um dom independente de quem
Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som
A vida seria um tom, uma altura a se atingir
Viver é saber subir, alcançar a nota lá
Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar

Não tenho medo da vida, mas medo de viver, sim
A vida é um dado em si, mas viver é que é o nó
Toda vez que vejo um nó, sempre me assalta  o temor
Saberei como afrouxá-lo, desatá-lo eu saberei?
A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor

A dor na carne e na alma, a calma a se propagar
A durar dia após dia, a varar noite, a dormir
A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar
A amanhecer de novo e de novo um novo dia
Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar 

Minha missão

$
0
0


No livro A hora da estrela, de Clarice Lispector, lemos: “Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. (...) Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade” (1998, p. 11-12).
Como sabemos, Macabéa e o narrador do livro são movidos por semelhante energia dolorosa: o estranhamento – Macabéa diante da cidade “toda feita contra ela”; e o narrador diante do ato mesmo de narrar. A dor vem do conflito entre a vontade e as dificuldades de vida. Porém, “choque entre o azul e o cacho de acácias”, como cantaria Caetano Veloso, a dor entre o pensar e o sentir, “contato interior inexplicável”, pode mobilizar e impulsionar a criação. E não é transformar “lágrima em canção”, como canta Zeca Baleiro, a “dor que deveras sente”, que o artista vive? E, noutro plano de interpretação, não é na permanente e necessária transvaloração dos valores que vive o humano?
“Minha missão”, de Paulo César Pinheiro e João Nogueira, trata da criação e resignificação da vida pela canção, pelo canto, no cantar. O sujeito canta a própria dor que carrega “o mundo e há falta de felicidade”: “Quando eu canto / É para aliviar meu pranto / E o pranto de quem já / Tanto sofreu”, entoa Mariene de Castro (Ser de luz - uma homenagem a Clara Nunes, 2013). O cantar é apresentado, então, como uma garrafada de ervas maceradas – cantar cura.
“Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música” (p. 82), anota o narrador de A hora da estrela, no momento de descrição da agonia de Macabéa após o atropelamento. “Macabéa, Ave Maria, cheia de graça, terra serena da promissão, terra do perdão, tem que chegar o tempo, ora pro nóbis, e eu me uso como forma de conhecimento. Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti. Espraiar-se selvagemente e no entanto atrás de tudo pulsa uma geometria inflexível. Macabéa lembrou-se do cais do porto. O cais chegava ao coração de sua vida” (idem), registra o narrador em gesto de espelhamento com a personagem. Narrar Macabéa faz o narrador-autor ser mais ele próprio. “Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus”, escreve (p. 24). Ou, como Mário de Andrade escreveu espantado no poema “Descobrimento”: “Esse homem é brasileiro que nem eu”.
 “Canto para anunciar o dia / Canto para amenizar a noite / Canto pra denunciar o açoite / Canto também contra a tirania / Canto porque numa melodia / Acendo no coração do povo / A esperança de um mundo novo / E a luta para se viver em paz”, canta Mariene de Castro com a melancólica vitalidade de quem vivencia as dores do sujeito da canção. Dor que rima com entrega lúcida à vida. Dor consciente dos prazeres e dos infortúnios de viver. Tudo isso gira na voz quente e épica de Mariene de Castro.
Assim como há exemplificação de “gaia ciência” no trecho do livro quando anuncia que “Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes” (Lispector, p. 29), também na canção “Minha missão” o sujeito sugere amor ao destino: “Do poder da criação / Sou continuação / E quero agradecer / Foi ouvida minha súplica / Mensageiro sou da música / O meu canto é uma missão / Tem força de oração / E eu cumpro o meu dever / Aos que vivem a chorar / Eu vivo pra cantar / E canto pra viver”.
Estas determinações, nada deterministas, ao contrário, tomadas mesmo como signos do viver, engendram o fazer cancional, por movimentar, organizar e re-apresentar sabedorias coletivas e comuns inerentes ao humano. “Quando eu canto, a morte me percorre / E eu solto um canto da garganta / Que a cigarra quando canta morre / E a madeira quando morre, canta”, diz Clara Nunes. Cantar é, portanto, interferir da dicotomia vida e morte.
“O meu canto é a minha solidão / É a minha salvação”, canta Cazuza. Macabéa “era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite assustava: parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal” (p. 33), anota o narrador. São destes materiais – solidão , silêncio, ruídos, fatalidades – que as canções são feitas. A fim de proporcionar salvação, que aqui interpreto como o re-ajustar do ser no mundo.
Por sua vez, escrevendo sobre os parentescos entre música e o horror da guerra, Pascal Quignard, em Ódio à música, observa: “A música foi a única, entre todas as artes, que colaborou com o extermínio dos judeus organizado pelos alemães de 1933 a 1945. Ela foi a única arte que foi requisitada como tal pela administração dos Konzentrationslager. É preciso sublinhar, em detrimento dessa arte, que ela foi a única arte que pôde se arranjar com a organização dos campos, da fome, do despojamento, do trabalho, da dor, da humilhação e da morte” (1999, p. 119). Como não reconhecer aqui o instante logo após o atropelamento de Macabéa? Como não ouvir mea culpa do sujeito de “Minha missão” que diz: “Quando eu canto / É para aliviar meu pranto / E o pranto de quem já / Tanto sofreu / Quando eu canto / Estou sentindo a luz de um santo / Estou ajoelhando / Aos pés de Deus”?
Ao contrário do que aconteceu a Macabéa, Quignard rechaça a música como consolo e ensaia um “desencantar”, um “subtrair ao poder do canto” (p. 152). Para o autor, “amplificada de uma maneira subitamente infinita pela invenção da eletricidade e pela multiplicação de sua tecnologia, [a música] se tornou incessante, agredindo tanto de dia como de noite” (p. 120) agravando memórias e sentimentos dos ouvintes na iminência da morte. “A música atrai para si os corpos humanos. É ainda a sereia no conto de Homero. (...) A música é uma isca que agarra as almas e as leva à morte" (idem).
Para além do “bem” e do “mal” que a música possa causar, penso que está o humano e sua capacidade de usos. É Quignard mesmo quem lembra que “é o canto do galo que faz são Pedro subitamente explodir em soluços” (p. 125). Canção é avivamento dos sentidos. E “os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona”, anota o narrador de A hora da estrela(1998, p. 24).
É o nosso instinto caraíba que leva-nos a fazer da canção popular uma extensão da gaia ciência onde o indivíduo de reconhece coletivamente brasileiro. Sem ter a pretensão de defender teses, ou seja, sem provar objetivamente aquilo que tematiza, mas por estar em sintonia com as urgências do humano, a canção popular no Brasil, através do “modo de dizer” de seus cancionistas (missionários), mobilizando não apenas o intelecto, mas outras faculdades e sentidos, contém filosofia; parecem ser o espaço onde o Brasil ensaia – onde Macabéas e seus narradores-autores se forjam.
Pelo prazer, e aqui sim podemos identificar o encanto, a isca, a canção popular no Brasil redimensiona dúvidas, ajuda o ouvinte a entender questões internas. Quantas vezes re-ouvimos uma canção a fim de reposicionar uma memória, um sentimento? Assim como aconteceu com o narrador de Macabéa e a personagem, no canto coletivo de uma canção como “Minha missão” suspendemos temporariamente a individuação, posto que reconhecemos as conexões que nos une. Em outras palavras, porque feita na in-certeza, a canção solapa a dor, a finitude e a transitoriedade.
Quignard parece movido pelas mesmas impressões que horrorizaram Adorno e Benjamin, ao escrever que: “A música multiplicada ao infinito, como a pintura reproduzida em livros, revistas, cartões-postais, filmes, CD-ROM, arrancaram-se de sua unicidade. Tendo sido arrancados à sua unicidade, foram arrancados à sua realidade. Isto feito, eles se despojaram de sua verdade. A multiplicação lhes tirou de sua aparição. Tirando-os de sua aparição, ela os tirou de seu fascínio original, de sua beleza” (p. 153).
Adorno, Benjamin e Quignard escrevem preocupados, entre outras questões, com a ação do capitalismo sobre a cultura. Assim como Mário de Andrade e Ariano Suassuna e seus projetos de Brasil. Importa a estes pensadores o impacto do mercado nas “fontes” de saber popular. E aqui cabe destacar que segundo Rodrigo Duarte, no livro Teoria crítica da indústria cultural, “no Brasil, ainda podemos, felizmente, diferenciar – pelo menos em termos parciais – a cultura popular mais enraizada, daquela totalmente fabricada para o consumo, ainda que tenha raízes supostamente popular” (2003, p. 192). Diferente da indistinção norte-americana entre “música de massa” e “música popular”, o que reforça a crítica dialética em Adorno.
Outrossim, por exemplo, temos no Brasil as chamadas “canções de protesto”, canções que tematizam nas letras, melodias e/ou gestualidades vocoperformáticas dos cancionistas a crítica à ideologia hegemônica. O que também diferencia a nossa realidade do corpus analisado por Adorno. Definir o que é “folclore”, “tradição”, “autenticidade”, “popular”, “de raíz”, “original”, no Brasil, requer amplitude teórico-prática sobre os efeitos culturais e políticos da canção.
Penso que acreditar que apenas a tradição, como se esta não dependesse da traição a si mesma – da inovação – para se reinventar e permanecer como tal (tradição), contém o núcleo luminoso da identidade nacional, é deixar de entender para que se canta: “para anunciar o dia / para amenizar a noite / pra denunciar o açoite / também contra a tirania”. E as mídias de reprodução têm servido de aliadas da preservação e da afirmação de identidades e culturas, ao revelar e disseminar continuamente o tupi e o alaúde, mitos e essências de brasilidades. “Quando eu canto / Estou sentindo a luz de um santo / Estou ajoelhando / Aos pés de Deus”, canta Mariene.
O cancionista – a neo-sereia, porque midiatizada – é o médium, a mediação orgânica, das sereias, musas, dos santos, orixás, mitos em complexo signo de rotação, no Brasil. Mariene de Castro apresenta uma voz de timbração forte, de mulher guerreira, sensual e nossa, brasileira, entre a sala e o terreiro, quente. A dicção está cheia de vigor e na própria entoação verificamos uma afirmativa “certeza da beleza” repleta de fulgor e encanto. A vida pulsa aqui, na voz de quem sabe para que canta: para remelexer a estrutura do nosso instinto caraíba.

 ***

 Minha missão
(Paulo César Pinheiro / João Nogueira)

Quando eu canto
É para aliviar meu pranto
E o pranto de quem já
Tanto sofreu
Quando eu canto
Estou sentindo a luz de um santo
Estou ajoelhando
Aos pés de Deus
Canto para anunciar o dia
Canto para amenizar a noite
Canto pra denunciar o açoite
Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia
Acendo no coração do povo
A esperança de um mundo novo
E a luta para se viver em paz

Do poder da criação
Sou continuação
E quero agradecer
Foi ouvida minha súplica
Mensageiro sou da música
O meu canto é uma missão
Tem força de oração
E eu cumpro o meu dever
Aos que vivem a chorar
Eu vivo pra cantar
E canto pra viver

Gandaia das ondas – Pedra e areia

$
0
0

Um conhecido soneto de Gregório de Matos, feito "ao braço do Menino Jesus quando apareceu", começa dizendo que "O todo sem a parte não é todo, / A parte sem o todo não é parte, / Mas se a parte o faz todo, sendo parte, / Não se diga, que é parte, sendo todo". E encerra: "Não se sabendo parte deste todo, / Um braço, que lhe acharam, sendo parte, / Nos disse as partes todas deste todo".
O persuasivo poema quer certificar ao fiel que aquele braço-parte contem o significado do Menino-todo. Anotando sobre as relíquias da Igreja Católica, no texto "O corpo, a igreja e o sagrado" (História do corpo, vol 1, p. 97-98), Jacques Gélis anota que "a fragmentação do corpo santo não perturba a consciência religiosa. Esmigalhar o corpo multiplica até os benefícios da relíquia, pois cada parcela conserva a carga sacral primitiva: aqui, a parte vale pelo todo. Portanto, nada se opõe à dispersão dos restos e até seria prejudicial privar deles os outros fiéis".
Tal artifício de montar afetivamente o todo através de partes dispersadas pode ser identificado na Arte, e em especial na teoria da literatura, naquilo que Eisenstein e Chklovski chamaram de "princípio da montagem" e "procedimento da singularização", respectivamente. O primeiro, a partir do cinema e do ideograma e, o segundo, partindo da literatura de Tolstoi.
Por sua vez, se a mitologia é o estudo dos mitos, estes resistem ao tempo naquilo que seus mitemas – unidades constitutivas do mito – tem de capacidade de adaptação e reinvenção nos encontros culturais. Ou seja, o mitema é aquilo que no mito se repete, mas se adapta. Por exemplo: Iemanjá é a rainha das águas. Esse mitema pode ser detectado nos vários mitologemas (conjuntos de narrativas míticas sobre um tema) no mito Iemanjá. Deste modo, não estaremos cometendo um erro grave se dissermos que é nas (re)montagens dos mitemas – partes no mito –, e, consequentemente, na permanente singularização deste, que está o núcleo vital do mito: a tradição que se trai para continuar tradição.
Como já me referi em outro momento, segundo Verger (1981, p. 190), "Iemanjá, cujo nome deriva de Yèyé omo ejá ("Mãe cujos filhos são peixes"), é o orixá dos Egbá, uma nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe ainda o rio Yemoja. As guerras entre nações iorubás levaram os Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá, no início do século XIX. Evidentemente, não lhes foi possível levar o rio, mas, em contrapartida, transportaram consigo os objetos sagrados e os suportes do àse da divindade. O rio Ògùn, que atravessa a região, tornou-se, a partir de então, a nova morada de Yemanjá".
Mais adiante, Verger anota que "Iemanjá é uma divindade muito popular no Brasil e em Cuba. (...) Diz-se na Bahia que há sete Iemanjás: Iemowô, que na África é a mulher de Oxalá; Iamassê, mãe de Xangô; Euá (Yewa), rio que na África corre paralelo ao rio Ògùn e que frequentemente é confundido com Iemanjá em certas lendas; Olossá, a lagoa africana na qual deságuam os rios. Iemanjá Ogunté, casada com Ogum Alagbedé. Iemanjá Assabá, ela é manca e está sempre fiando algodão. Iemanjá Assessu, muito voluntariosa e respeitável." (p. 191).
Segundo Lydia Cabrera (Iemanjá e Oxum, 2002, p. 37), "podemos imaginar Iemanjá emanada de Olocum, com seu poder e suas riquezas, mas sem as características tremebundas que o associam mais à morte do que à vida, como sua manifestação feminina – 'Iemanjá é muito maternal' – e benéfica". A autora também dá sete nomes, mitologemas, qualidades, avatares, caminhos (para se chegar) a Iemanjá, em Cuba: 1- Iemanjá Awoyó é a primogênita. Aquela que usa os trajes mais ricos e sete anáguas para guerrear e defender seus filhos. Ela vive distante no mar e repousa na lagoa; come carneiro e, quando sai a passeio, usa as jóias de Olokum e coroa-se com Oxumarê, o arco-íris; 2- Iemanjá Ogunte é azul-clara e vive nos arrecifes próximos à praia. É a guardiã de Olokum. É uma amazona temível e mulher de Ogum, deus da guerra; Ela é severa, rancorosa e violenta; 3- Iemanjá Maleleo ou Maylewo mora nos bosques, em um pequeno poço ou manancial. Assemelha-se à Oxum pela relação com as feiticeiras. Tímida e reservada incomoda-se quando se toca o rosto de sua iaô (filha) e retira-se da festa; 4- Iemanjá Asaba é perigosa e voluntariosa. Usa uma corrente de prata no tornozelo. Seu olhar é irresistível; 5- Iemanjá Konla ou Akura vive na espuma da ressaca da maré, envolta numa vestimenta de algas e lodo. Por ser navegante, vive nas hélices dos barcos; 6- Iemanjá Apara vive na água doce, na confluência de dois rios, onde encontra sua irmã Oxum. Gosta de dançar, é alegre e muito correta. Cuida dos doentes, prepara remédios; 7- Iemanjá Asesu é a mensageira de Olokum. Vive na água agitada e suja. Muito séria e trabalhadora. É muito lenta em atender seus fiéis, pois conta meticulosamente as penas do pato a ela sacrificado, e caso se engane na conta, começa de novo indefinidamente.
Para Antonio Risério (A utopia brasileira e os movimentos negros, 2007, p. 213): "Os brasileiros alcançaram realizar, ao longo dos séculos de sua existência histórica, a construção de um país ao mesmo tempo singular e plural, uno e caleidoscópico, tecendo a sua trama biossemiótica ao abrigo e à luz de uma língua portuguesa que se transfigurou, sincreticamente, para delimitar um novo espaço linguístico, o do português do Brasil".
Essa concepção de um signo uno e múltiplo, sincrético é muito bem exemplificado em Iemanjá (a grande mãe africana do Brasil), explicando, de viés, o motivo de, no Brasil, o orixá se identificar com Maria. "Porque o sincretismo não foi coisa de uma gente passiva, mas iniciativa de atores vitais de nossa história e de nossos processos culturais. (...) é mais correto pensá-lo no campo de forças ou no jogo semiótico das apropriações simbólicas", (Risério: 2007, p. 219).
É homenageando Iemanjá em suas sete mais conhecidas representações (mitemas) que o DVD Mães D’Água – Yèyé Omó Ejá (2010) reúne sete cantoras para interpretar canções que evocam e montam a Iemanjá una. Sendo força, energia, axé, Iemanjá é “montada” aqui em sua mitopoética pelas singularizações sutis lançadas nos filigramas entre versos, melodias e performances vocais.
É o caso de "Gandaia das ondas – Pedra e areia", de Lenine e Dudu Falcão. O sujeito da canção, tal e qual o sujeito de "O mar", de Dorival Caymmi, demonstra-se encantado com a beleza do mar que quebra na praia, inaugurando verdes novinhos em folha. "É bonito se ver na beira da praia / A gandaia das ondas que o barco balança / Batendo na areia, molhando os cocares dos coqueiros / Como guerreiros na dança", diz o sujeito.

Acompanhada pela Sinfônica Yèyé Omó Ejá, sob a regência do maestro Ângelo Rafael Fonseca, Luciana Mello faz o convite: "quem não viu vai ver / a onda do mar crescer". Para depois agregar os versos de domínio popular, da Ciranda de Lia de Itamaracá: "Eu tava na beira da praia / Ouvindo as pancadas das ondas do mar".
Importa destacar a referência a Dakar – "Rezo, paguei promessa / E fui a pé daqui até Dakar". Como sabemos, a capital do Senegal, na península do Cabo Verde, foi o maior centro de tráfico de escravos para a América, entre os séculos XVI e XIX. É nos versos de domínio público "Iemanjá, sai do mar / Vem buscar sua iaô / Ó santa de azul, ó santa do mar / Vem ver seus filhos, Iemanjá", que reconhecemos o sujeito da canção como um filho em estado de oração e de afirmação.
Foi Nietzsche, em Sobre a genealogia da moral e Além do bem e do mal, quem observou que, diferente da tradição domesticadora do humano da moral judaico-cristã, no mito reside a força do herói que não se deixa abater diante do destino, da moira. Em "Gandaia das ondas" o sujeito elogia a natureza ao mesmo tempo em que pede o amparo da deusa e se afirma: "Água, mágoa do mundo / Por um segundo / Achei que estava lá".
Para Vinicius de Moraes: “O negro americano, absorvido, como o negro brasileiro, pela escravatura, é originário das mesmas regiões da África que o nosso. (...) o que houve, com relação ao negro brasileiro, é que ele pôde, em terras brasileiras – e na Bahia com especialidade, conservar a força e a autenticidade dos seus mitos. O candomblé baiano é um híbrido antes bastante puro. (...) Já o negro americano sofreu o impacto do protestantismo, e os escravos tiveram que adaptar seu ritmo aos hinos religiosos protestantes que, em última instrução, resultaram nos spirituals e souls, de onde originou a forma de blues e, posteriormente, (...) no chamado ‘hot jazz’ de King Oliver, Louis Armstrong etc”. (“O negro no samba e no jazz”, em Samba falado, 2008, p. 15).
Toda feita em partes, Iemanjá se presentifica. Mimetizada na cantora, Iemanjá se fortalece fortalecendo o ouvinte que sente aconchegado no colo e útero da grande mãe, como ele, sincretizada, desterritorializada, porém, ela, ser resultado de nossa competência brasileira à tolerância, ao amálgama.

***

Gandaia das ondas - pedra e areia
(Lenine / Dudu Falcão)

É bonito se ver na beira da praia
A gandaia das ondas que o barco balança
Batendo na areia, molhando os cocares dos coqueiros
Como guerreiros na dança
Oh, quem não viu vá ver
A onda do mar crescer

Olha que brisa é essa
Que atravessa a imensidão do mar
Rezo, paguei promessa
E fui a pé daqui até Dakar

Praia, pedra e areia
Boto e sereia
Os olhos de Iemanjá
Água, mágoa do mundo
Por um segundo
Achei que estava lá

Eu tava na beira da praia
Ouvindo as pancadas das ondas do mar
Não vá, oh, morena
Morena lá
Que no mar tem areia

Iemanjá, sai do mar
Vem buscar sua iaô

Ó santa de azul, ó santa do mar
Vem ver seus filhos, Iemanjá

Odô odô odô odô odoiá

Mansidão

$
0
0


Ao cantar uma história que ele supõe e sugere ser sua, o sujeito da canção cria o próprio autoconhecimento e, de viés, em um procedimento que amalgama efeitos lúdicos, estéticos e psicológicos, aproxima-se do ouvinte através da vocoperformance do intérprete. Dito de outro modo: ao reconhecer naquilo que o cantor diz algo que lhe toca por dentro, o ouvinte promove o cantor ao posto de neo-sereia e o sujeito da canção (o eu-lírico) a sujeito cancional.
É quando narra o ouvinte que o sujeito cancional se realiza, é quando convida o ouvinte ao autoconhecimento que a neo-sereia se mostra em sua completude vital e mortífera. O cantor é neo-sereia quando presentifica a canção, quando aquilo que ele diz reflete e refrata o ouvinte. Por isso, o modo de dizer, de cantar é de suma importância.
Na pergunta-canção de Luiz Tatit e Marcelo Jeneci "Por que nós?" o sujeito, via voz do cantor, sugere: "Sempre tem gente pra chamar de nós / Sejam milhares, centenas ou dois / Ficam no tempo os torneios da voz / Não foi só ontem, é hoje e depois / São momentos lá dentro de nós / São outros ventos que vêm do pulmão / Ganham cores na altura da voz / E os que viverem verão".
É dessa irmandade - de milhares, centenas ou dois - entre destinador (cantor) e destinatário (ouvinte) que o sujeito cancional se alimenta para fazer surgir a neo-sereia ali, no ouvido, na frente, dentro do ouvinte-espectador da imanência. É quando o cantor trabalha artesanalmente "momentos lá dentro de nós", trazendo-os à cena nos "torneios da voz", fazendo tais momentos ganhar "cores na altura da voz", que o verão se instala no ouvinte vivente - "Não foi só ontem, é hoje e depois".
Como não pensar em tais coisas ao ouvir/ver Gal Costa cantar "Mansidão", de Caetano Veloso (Recanto ao vivo, 2013)? Como não sentir os "ventos que vêm do pulmão" de Gal ganhando "cores na altura da voz"? Eis o momento de puro amor, de pura poesia que a neo-sereia proporciona ao ouvinte, através das rimas em "im" (mim?) que, por sua vez "chamam" o ouvinte para um estado passional de contemplação interior diante do "vasto céu".
Não resta dúvida, "Mansidão" é poema cantado. Sobre o que é um poema, acredito ser importante trazer uma citação (longa) de Antonio Cícero, do texto "Poesia e preguiça" (In. NOVAES, Adauto (org.). Mutações, elogio à preguiça): "O poema é análogo a outras obras de arte. Tomemos como exemplo de obra de arte um dos quadros em que Rembrandt retrata um velho. O velho é um dos elementos da pintura. Não podemos mais saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente existiu. Tudo somado, o que realmente conta é o que Rembrandt faz no processo de produção do retrato, no seu embate e jogo como a matéria da pintura. É então que surgem, para o pintor, novas ideias e ambições, assim como novos problemas concretos. A cada passo, o pintor é solicitado pela própria pintura a desenvolver novas soluções pictóricas, em função tanto das necessidades de cada situação imprevista como das oportunidades que antes não existiam. Essas soluções não são apenas o produto das ideias que já se encontram prontas, "escritas na alma" do pintor, mas da combinação de todas as faculdades do artista, além de técnica, inspiração experiência etc. Quando a obra fica pronta, o jogo dessas mesmas faculdades será a fonte do prazer estético de quem a contemplar. A medida na qual a obra provocar esse jogo será a medida do seu valor estético. Desse modo, esse jogo produzirá um pensamento que não é puramente intelectual, mas que se dá também através de cores, luzes, sombras, linhas, planos, volumes etc. Todas essas coisas brincarão umas com as outras no espírito de quem apreciar tal pintura. No final, o quadro não é apenas sobre o velho, embora o velho faça parte de tudo o que o quadro é. No fundo, o tema do quadro é apenas um dos elementos. O quadro é aquilo sobre o qual nós, que o apreciamos, pensaremos e falaremos. Pois bem, assim são os poemas: objetos de palavras, com todos os seus sentidos, seus referentes, seus sons, seus ritmos, suas sugestões, seus ecos." (p. 326-327).
No calor da voz de Gal Costa, "Mansidão" é este móbile de palavras grávido de sentidos e referentes sobre o qual Antonio Cícero fala. Além disso, a letra da canção, com versos como "Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim / Violão deita em minha mão, acordar algumas notas // Pois está tudo onde deve estar, nada será ruim / Mansidão, luminosa paz, minha voz e aquela estrela", amplia a presença de alguém-cantor em estado de autocontemplação investigando as energias que lhe impulsiona ao canto, ao cantar.
Os torneios da voz da cantora dá vida ao sujeito cancional que, diante da imensidão do vasto céu, examina a própria epiderme e encontra a mansidão titular do autoconhecimento. Estando no "vasto chão", este procedimento alça Gal Costa ao posto de neo-sereia, acordando algumas notas no violão, que canta o ouvinte – pequeno-grande, semelhante a ela.
Cantar, aqui, "é ter o coração daquilo" que inverte com ganhos para quem canta e para quem ouve as posições "vasto chão/vasto céu". Cantar, aqui, na voz de Gal Costa, é encontrar um lugar no mundo. Um espaço entre o verme e a estrela, como está no poema de Pedro Kilkerry. Um ponto equidistante entre o céu e o chão. Nada tem começo, nada tem fim. "Minha voz, minha vida", canta Gal. "Não foi só ontem, é hoje e depois", canta Tatit. "Tão largo o céu / Tão largo o mar / Tão curta a vida", canta Marisa Monte. E o ordinário é lançado para um lugar primordial, que, se nunca existiu de fato, é modelo onírico.

***

Mansidão
(Caetano Veloso)

Vasto céu, diminuta luz estelar brilha entre as nuvens
Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim
Violão deita em minha mão, acordar algumas notas
Colocar com exatidão na sombra o clarão sem fim

Um amor que já me fez chorar agora não fará, não sofro mais assim
Pois está tudo onde deve estar, nada será ruim
Mansidão, luminosa paz, minha voz e aquela estrela
Vasto chão, sensação feliz, seda, linho, lã, cetim

Beijo da Iara

$
0
0


Como sabemos, mitologicamente a poesia (o logos poético) está ontologicamente imbricada à musicalidade, ao ritmo da vocalização das palavras. Convenientemente, o corte acontece no Renascimento, momento de radicalização do longo processo filosófico de desvocalização do logos. "Capturando a phoné no sistema da significação, a filosofia não só torna inconcebível um primado da voz sobre a palavra como também não concebe ao vocálico nenhum valor que seja independente do semântico. Reduzida a significante acústico, a voz depende do significado. Longe de ser óbvia, essa dependência é fundamental. Ela aprisiona a voz num sistema complexo que subordina a esfera acústica à visual", anota Adriana Cavarero, em Vozes plurais (2011, p. 52).
É também Cavarero quem registra: "A matriz etimológica é conhecida. Logos deriva do verbo legein. Desde a Grécia arcaica, este verbo significa tanto 'falar' quanto 'recolher', 'ligar', 'conectar'. Isso não é surpreendente, uma vez que quem fala liga as palavras umas às outras, uma após a outra, recolhendo-as em seu discurso. Tampouco é estranho que, exatamente por isso, legeinsignifique também 'contar' e, ainda mais propriamente, 'narrar'. Na sua acepção comum, o logos se refere à atividade de quem fala, de quem liga os nomes aos verbos e a qualquer outra parte do discurso. O logos consiste essencialmente numa conexão de palavras. Justamente nesse plano da conexão, que 'liga' e 'recolhe' segundo determinadas regras, está centrada a atenção da filosofia. Centrada inclusive com prejuízo – mas talvez fosse melhor dizer: sobretudo com prejuízo – do plano acústico da palavra. O logocentrismo filosófico se interessa, principalmente, pela ordem que regula a conexão, isto é, pela linguagem como sistema da significação". (p. 50-51).
Felizmente, parte importante dos pensadores, entre eles Adriana Cavarero, vem questionando os paradigmas de base platônica de desvocalização do logos. O ponto central da questão não é a desvalorização da escrita, ou sua negação, mas observar os contatos, as intersecções e os pontos de mutação entre a palavra falada e a palavra escrita. Importa ouvir o logos não para "entende-lo" (racionalmente), mas para a partir dele escolher caminhos. Ou seja, questionar a ordem que regula a conexão entre as palavras e se deixar envolver com a "força bruta": ser criação ao ritmo do plano acústico da palavra.
"Quando dizemos que o som era sentido, sua força era de tocar o homem para qualquer lugar e não de fazer o homem refletir sobre este fenômeno, dividi-lo ou analisá-lo. Assim, a gestualidade espontânea do corpo é já por si mesma certa objetivação, uma certa manifestação do sentido. Ela não é, obviamente, a objetivação de uma ideia, mas a de uma situação no mundo sobre a qual se decalcam as próprias ideias", anota Li Tomás, em Ouvir o lógos: música e filosofia (2002, p. 50).
É por isso que a proposta do meu trabalho passa por um retorno mitológico do vocalizar, do cantar, do narrar: por reconhecer aqui que a sonoridade das palavras tem mais relevância do que seus significados. Ou melhor, que o plano acústico da palavra está visceralmente ligado à significação empreendida pelo ouvinte. Daí também que um livro como Milagrário pessoal, de Jose Eduardo Agualusa, ajuda na argumentação de minha intenção. 
Temos no livro de Agualusa o embate entre um professor e uma ex-aluna (Iara), linguista, cujo trabalho é identificar e dicionarizar as palavras novas. "A Iara interessam sobretudo as palavras recém-nascidas, ainda úmidas, ofegantes, indefesas, caídas de repente nesse vasto alarido que é a vida. Para encontrar eventuais neologismos serve-se de um programa informático, o Neotrack, o qual recolhe, a partir dos jornais do dia disponíveis na internet, as palavras não dicionarizadas" (p. 15).
Fazendo uso de uma escrita que utiliza o ritmo da fala, posto que a "sensação" criada é a de uma conversa entre narrador e leitor, Agualusa tematiza a complementaridade entre a fala e a escrita. O narrador se dirige diretamente ao leitor, bem como faz avanços e recuos no tempo, suspensões da narrativa para inserir outras histórias, num procedimento típico da oralidade. 
Iara entra em conflito quando percebe a disseminação inesperada de um grande número de neologismos. E busca a ajuda do antigo professor para entender o problema. Em geral, personagens femininas são o motor dos romances de Agualusa, na contramão de certa corrente que silencia as mulheres que cantam.
Referência indígena brasileira, em Milagrário pessoal Iara, para além da personagem, mas mimetizada ao narrador, é a sereia que seduz o leitor a ouvir o som das palavras: "Até esta altura qual foi o neologismo mais bonito que tu encontraste? Iara esperava a pergunta: Não sei, rendeu-se. Nunca me apareceu uma palavra bonita. Mesmo bonita. A verdade é que os neologismos são quase todos feios. Acho-os, de uma forma geral, grosseiros e enfadonhos" (p. 16-17). Mais adiante, quando instigada a escolher as dez palavras mais bonitas da língua, Iara sugere que é a sonoridade o que as tornam bonitas e grávidas de significado. 
A indicação de Iara como sereia, gesto de recuperação, apropriação e manipulação do mito feito por Agualusa durante todo o romance, está presente já na capa do livro. Tanto na edição portuguesa – fotografia de uma imagem de Iara em local de devoção, quanto na brasileira – fotografia “A Sereia e o Cinema”, still do vídeo Psinoe, de Adriana Varejão.

Seja como for, a sereia amazônica Iara imprime sua mitopoética no imaginário da língua portuguesa-brasileira e se espalha pelas artes. De José de Alencar (O tronco do ipê) ao grupo Axial ("Beijo da Iara", de Kiko Dicucci), passando por Olavo Bilac ("Iara"), que descreve a sereia: "Vive dentro de mim, como num rio, / Uma linda mulher, esquiva e rara, / Num borbulhar de argênteos flocos, Iara / De cabeleira de ouro e corpo frio. / Entre as ninfeias a namoro e espio: / E ela, do espelho móbil da onda clara, / Com os verdes olhos úmidos me encara, / E oferece-me o seio alvo e macio. / Precipito-me, no ímpeto de esposo, / Na desesperação da glória suma, / Para a estreitar, louco de orgulho e gozo... / Mas nos meus braços a ilusão se esfuma: / E a mãe-d'água, exalando um ai piedoso, / Desfaz-se em mortas pérolas de espuma.". Entre outras tantas inúmeras aparições. 
A título de mais um exemplo, na canção "Kirimurê", de Jota Velloso, ela é a sereia que canta a afirmação da existência de um povo que foi dizimado – "Onde era mata hoje é Bonfim / De onde meu povo espreitava baleias / É farol que desnorteia a mim" – e da certeza da permanência do desejo de ser os donos daqui: "Se me der a folha certa / E eu cantar como aprendi / Vou livrar a Terra inteira / De tudo que é ruim". Sabe-se que a região que hoje conhecemos como Baía de todos os santos era chamada pelos tupinambás de Kirimurê. Na voz de uma Maria Bethânia (Mar de Sophia, 2006) mimetizada em Iara, a canção ganha sentidos amplos: "Espelho virado ao céu / Espelho do mar de mim / Iara índia de mel / Dos rios que correm aqui / Rendeira da beira da terra / Com a espuma da esperança (...) Na fome da minha gente / E nos traços que eu guardo em mim / Minha voz é flecha ardente / Nos catimbós que vivem aqui".
Assemelha-se a essa "Iara índia de mel", a cantada pelo grupo Axial em "Beijo de Iara" (Simbiose, 2011). Ambas são concentração de doçura e resistência, "espelho virado ao céu" a refletir no ouvinte que a escuta a beleza de seu canto beira-rio. Diz o sujeito da canção: "Ouvi no beira-rio / um canto ecoar / é a mãe d´água / pra me encantar". 
Senhora das águas ou Mãe-d'água, a mitopoética de Iara é contada vocalmente e passa gerações. O sujeito da canção recolhe e condensa algumas narrativas sobre a sereia. Nos versos "Rema rema remador / Iara quer te namorar / quem provar dos beijos seus / com a morte vai se casar", temos tanto a retomada da cantiga folclórica "Rema rema remador, que este barco é do Senhor", quanto da marchinha "Marcha do remador”: Rema, rema, rema, remador / Quero ver depressa o meu amor / Se eu chegar depois do sol raiar / Ela bota outro em meu lugar". No encontro dos fragmentos das canções permanece o mote de não sucumbir ao canto mortal.
Mas está no modo de apresentação da canção por Sandra Ximenez (vocais e piano elétrico), Felipe Julián (loops, ruídos e teclados) e Leonardo Muniz Corrêa (clarinete) o engenho do encanto. O clima sonoro criado pelo grupo presentifica a mítica sereia. O palimpsesto cultural brasileiro, onde Iara se forja, é apontado na palheta de sons do grupo Axial. E assim o feitiço se realiza: "Espelho virado ao céu / Espelho do mar de mim / Iara índia de mel / Dos rios que correm aqui", como canta Bethânia. Ou: "Sinhá sereia chegou / beldade maior / nunca se viu // Deixa eu banhar você / lavar teus cabelos / nas águas do rio". 
O grupo Axial e Maria Bethânia mostram que a potência da palavra está em sua vocalização. É assim também que age o narrador de Agualusa: logos vocalizado, quente e úmido na voz de alguém cantando. "O corpo aí se recolhe. É uma voz que ele escuta e ele reencontra uma sensibilidade que dois ou três séculos de escrita tinham anestesiado, sem destruir", como observaria Paul Zumthor, em Performance, recepção, leitura (2007, p. 60). Surge o beijo. Da Iara.

 ***

Beijo da Iara
(Kiko Dicucci)

Ouvi no beira-rio
um canto ecoar
é a mãe d'água
pra me encantar

Rema rema remador
Iara quer te namorar
quem provar dos beijos seus
com a morte vai se casar

Sinhá sereia chegou
beldade maior
nunca se viu

Deixa eu banhar você
lavar teus cabelos
nas águas do rio

Bamba querê

$
0
0


São vários e complexos os caminhos que levam à musicalização de um texto escrito. Sabemos que as palavras tem "musicalidade", mas esta só é efetivada na voz, na vocalização da palavra. Sentimos esta musicalidade, já devidamente naturalizada dentro de nós, ao ler silenciosamente um texto porque estamos infectados pela memória sonora da palavra falada (cantada), pela sua materialidade vocal.
Encontrar a gestualidade vocal exata, equilibrar texto e música na voz para "melhor dizer" uma mensagem é tarefa árdua e prazerosa enfrentada pelo cancionista. O certo é que se não há um "jeito único" de vocalizar um texto, cabe ao destinador esquentá-lo de modo a transmitir a mensagem da melhor forma possível à compreensão do destinatário. Do mesmo modo como fazemos ao falar. Ou seja, as "mesmas palavras" servem a intenções diversas e para diferenciar as intenções a voz entra em ação. Quando lemos um texto, entre outros artifícios, os sinais oferecidos pelo narrador são o que nos auxilia a distinguir as intenções.
Caetano Veloso, por exemplo, opta por uma cama sonora passional para musicar/vocalizar um trecho do livro Minha formação, de Joaquim Nabuco, incentivado pela constatação do narrador que diz: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil". Ao falar sobre o permanência fantasmagórica da escravidão como algo introjetado ao jeito de ser do brasileiro, entre lembranças, saudades e afirmações, o cancionista recusa qualquer gesto que nublaria sua introspecção, sua reflexão interna sobre o caso. "É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte", Caetano Veloso finaliza vocalmente melancólico para plasmar a melancolia do sujeito da canção, do narrador de Nabuco.
Dito isso, podemos começar a entrar no entendimento da proliferação de sons com a qual Iara Rennó presenteia o ouvinte do disco Macunaíma Ópera Tupi (2008). Tradução intersemiótica do livro Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, o disco de Iara musica e vocaliza trechos levando o ouvinte a empreender uma viagem etno-antropo-semio-musicológica tal e qual a organizada pelo musicólogo Mário de Andrade na seminal Missão de Pesquisas Folclóricas. O disco é o resultado das anotações afetivas a partir da leitura de Iara sobre o livro.
Notas sobre notas, somos convidados a navegar com Macunaíma pela diversidade do Brasil sonoro. Turistas aprendizes que somos. Justapondo música erudita e música folclórica, bem como funk, eletrônico, sem juízos de valor, mas pelo prazer do gesto brasileiro, o disco explicita o vigor plural e étnico do país. E o conjunto resulta em ritual sincrético: violino e tambor, eletrônico e cordel, psicodelia e cantigas folclóricas, o Tupi e o alaúde. Embolada, repente, rap. Difícil definir. Melhor sentir e reconhecer na (pro)fusão os rascunhos de Brasil.
Ao extrair do livro reconhecidamente importante ao cânone literário brasileiro os trechos e versos que compõem as canções do disco, Iara promove, via instinto caraíba, a valorização da antropofagia como signo estético e artístico. Além de devolver às palavras a vocalização contida nelas antes de Mário de Andrade as fixar no papel.
Iara revocaliza lendas, mitos e rituais indígenas, africanos e portugueses com a mesma perspicácia rapsódica engendrada pelo autor do livro. E, assim, a "ópera tupi", a "odisseia" de Mário se (re)traduz em veículo da tradição vocal e popular. Como o autor anota ao final do livro: "Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente".
Traindo a tradição para manter a beleza da tradição, Iara copia, recorta, cola, mistura a "fala impura". Vejamos o exemplo de "Bamba querê. A canção incorpora a cadência das aliterações presentes no texto de tal modo que fica difícil para o ouvinte imaginar outra rítmica senão a criada e inventada por Iara. É na dança do orixá Iemanjá no terreiro que Iara se mira para construir a canção e plasmar a imagem do cavalo possuído diante do ouvinte. Vejamos o trecho do livro de onde a cantora capturou a canção:

No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar. Porém por causa de não ter força tinha mas era muito medo do gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer e Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.
Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga  obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblézeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo, pro chão de terra.
Vai, um rapaz filho de Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta.
Então a macumba principiou de deveras se fazendo um çairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: v. ...
— Ôh Olorung!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata continuava:
— Ô Boto Tucuchi!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Docinho numa reza mui monótona.
— Ô Iemanjá! Anamburucu! e Ochum! três Mães-d'água!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando:
— Uuum!... uuum!... Exu! Nosso padre Exu...!
E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O çairê continuava:
— Ôh Rei Nagô!
— Va-mo sa-ra-vá!... Docinho na reza monótona.
— Ôh Baru!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o pé-de-pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando:
— Uuuum!... Exu! Nosso padre Exu!...
E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.
— Ôh Oxalá!
— Va-mo sa-ra-vá!...

Como vemos, Iara Rennó antologiza, em tom mário-andradino, exatamente os versos vocalizados para montar a canção "Bamba querê". A querência de Iara desterritorializa, remelexe, bambeia extratos sonoros para (re)apresentá-los encapsulados em forma de uma canção una, núcleo duro do país de semiologia macunaímica. E, assim como Haroldo de Campos anotou sobre o livro, “no coquetel, porém, havia método” (em Morfologia do Macunaíma, 1973, p. 79), no canto de Iara – ou seria da Iara (sereia)? – há a aplicação do método daquilo que podemos chamar, juntos com José Celso Martinez Corrêa, de “macumba antropofágica”. Desse modo, a "linhagem rabelaisiana" presente no livro é restaurada por Iara na canção, no disco: do cruzamento de várias sintaxes ao protagonismo da voz, passando pelo além do bem e do mal nietzschiano.

***

 Bamba querê
(Mário de Andrade / Iara Rennó)

Bamba querê
Sai Aruê
Mongi gongo
Sai Orobô
Êh!

Ôh mungunzá 
Bom acaçá 
Vancê nhamanja 
De pai Guenguê
Êh!

Ôh Olorung
Ô Boto Tucuchi
Ô Iemanjá
Anamburucu
Ochum
três Mães-d'água
Vamo saravá

Canto de Iemanjá

$
0
0


Mário de Andrade intuiu que o ethos da cultura popular traz consigo as marcas da história: é palimpsesto do tempo. E que, atravessando tecnologias e contextos históricos, os gestos vocais e de escuta guardam os fragmentos de essencialidade da gaia ciência.
De seu contato com os índios Pacáas Novos, Mário anotou: “Pra eles o som e o dom da fala são imoralíssimos e da mais formidável sensualidade. As vergonhas e as partes não mostráveis dos corpos não são as que a gente consideramos assim. (...). Consideram o nariz e as orelhas, as partes mais vergonhosas do corpo, que não se deve mostrar a ninguém, nem pros pais, só marido e mulher na mais rigorosa intimidade. Escutar, pra eles, é o que chamamos de pecado mortal. Falar pra eles é o máximo gesto sexual” (O turista aprendiz. 2002: 85-86). E sobre os “Índios Dó-Mi-Sol”, Mário observa que mais importante do que aquilo que se comunica está o modo de se comunicar.
Para o criador de Macunaíma, mais do que uma colagem de sonoridades indígenas, africanas e europeias a música brasileira deveria ser o amálgama unificador indistinguível das configurações artísticas nacionais. Social (coletiva) e primitiva a música brasileira deveria rejeitar exotismos e estrangeirismos que maculasse a pureza do folclore fonte e matéria prima. Caberia ao cancionista mesclar inconscientemente cultura erudita e cultura popular. Ou seja, promover a utópica mistura da nação com a modernidade.
A questão é que certa hierarquização ainda persiste na classificação de canção.  Não que o popular deva se imiscuir com o popularesco, mas a percepção marioandradina parece ter dado mais argumentação aos apocalípticos do que aos integrados, para usar os termos de Umberto Eco, se é que podemos separar tais instâncias tão nitidamente assim no Brasil.
Parece que herdamos de nossa matriz indígena a fala como espaço da exuberância erótica, da proliferação barroca, da polifonia vocal. “Máximo gesto da expressão vocal”, falar é roçar o outro, entrar em contato, se misturar: falar sempre, falar mais é nossa questão brasileira no eterno retorno da pulsão nacionalista distintiva. Daí que para entender as relações de poder na semiótica Brasil não basta pensar apenas o embranquecimento da população, mas também, em comunhão perspectiva, o enegrecimento: seus pontos de resistência diante das atrocidades do colonizador. E mesmo a indigenização.
Trago à discussão três exemplos que considero significativos de tais resistências. No capítulo 5 do Sermão IX, Padre Antonio Vieira comenta “o milagre da salvação da armada do Príncipe Dom João de Áustria no Mar de Lepanto”. Vieira lembra que, no Apocalipse, São João diferencia as criaturas senhoras do mar. Por exemplo, a baleia que “comeu” Jonas e o peixe que “salvou” João da Áustria.
Anota Vieira: “Passando de Nápoles para Túnis com grossa armada, foi tal naquela travessa a fúria de tormenta, que os pilotos, desconfiados de todo o remédio e indústria humana, se deram por perdidos. Recorrendo, porém, todos aos socorros do céu, e invocando o católico e piedoso príncipe a sua singular patrona, e suplicando-a que, assim como lhe tinha dado vitória contra os inimigos, lha concedesse também contra os elementos, que sucedeu? Caso verdadeiramente raro, e com perigo sobre perigo e milagre sobre milagre, duas vezes maravilhoso. No mesmo ponto cessou a tempestade, mas não cessou o perigo. Cessou a tempestade, porque subitamente ficou o vento calmo e o mar leite; mas não cessou o perigo, porque o galeão que levava a pessoa real, sendo o mais forte e poderoso vaso de toda a armada, visivelmente se ia a pique. (...) Mas a soberana Rainha e Senhora do mar não sabe fazer mercês imperfeitas. Assim como tinha cessado a tempestade do vento, assim cessou a da água. (...) Com a força da tempestade tinha-se aberto um rombo junto à quilha da nau, por onde a borbotões entrava o mar, quando um peixe do mesmo tamanho, por instinto da poderosa mão que o governava, se meteu pela mesma abertura, de tal sorte ajustado ou entalhado nela, que, sem poder tornar atrás nem passar adiante, cerrou totalmente aquela porta. (...). Assim se vê hoje pintado em Nápoles, e pendente ante os altares da Virgem Santíssima, o retrato de todo o sucesso: a tempestade, o galeão naufragante, e o peixe que o salvou atravessado, em perpétuo troféu e monumento do soberano poder e nome de Maria, como Senhora, não só do mar, mas de quanto sobre ele navega ou dentro nele vive”.
Como não reconhecer aqui fragmentos do mito mariano de Nossa Senhora Aparecida, padroeira negra(?) do Brasil? Bem como de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Ajuda, de Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora da Conceição. Todas Maria. Todas sincretizadas a Iemanjá, Oxum e outros orixás aquáticos vindos de cantos distintos da África e reunidos no (uno) Brasil. Várias, de cada região geograficamente específica da África, aqui Iemanjá é uma, como Maria, em permanente processo de proliferação e condensação do mito.
Sobre Nossa Senhora Aparecida, no livro Mamãe me adora, o escritor Luís Capucho registra que debaixo da famosa basílica haveria uma gruta onde vive uma sereiazinha, que não fala português nem se comunica com ninguém. Quem sabe não seria Nananborocô, a mãe primeira do panteão afro-brasileiro, orixá das águas paradas, velha sereia?
O segundo exemplo de permanência da resistência vem do livro O outro pé da sereia, de Mia Couto, quando este trata da perturbação que a estátua da Virgem Maria causa entre os escravos. Eles associam a imagem à senhora das águas – Kianda. É quando Dia critica a submissão de Nimi Nsundi perante a Virgem portuguesa que este revela: “Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não veem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar. (...) aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem” (COUTO: 2006, p. 113).
Aqui se revela a rebelião pelo jogo, o usar (apropriar-se) dos signos do outro, antropofagicamente, dentro do conflito cultural, para permanecer sendo o que se é. O sincretismo, mais do que submissão ou negação, ressalta a astuta compreensão teológica, cultural e social. O sincretismo é instrumento de afirmação identitária. “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui” (idem).
E assim percebemos que os mitemas das sereias não chegam para nós apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Europa, África e Iara nos fornecem os cantos do mundo ancestral a ser ouvido.
E assim chego ao terceiro exemplo. Como não reconhecer o recolhimento em expansão destas filigranas históricas na grandeza épica e étnica da voz de Virgínia Rodrigues? Ao cantar “Canto de Iemanjá”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell (Mares profundos, 2004), Virgínia tenciona erudito e popular recuperando da Mãe de Jesus a Kianda, de Ulisses amarrado ao mastro (cruz sacrificial) ao culto dos mártires, dos nomes das caravelas portuguesas à índia Paraguaçu.
Divindades e orixás bailam e se misturam na voz de Virgínia. Voz apolínea que guarda profundos mares do estado dionisíaco. A sutileza da presença percussiva dos tambores, em harmonia com o acompanhamento melódico orquestral de cordas, não nega as marcas da história, posto que tudo está em presença na voz. “Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é dona Janaína que vem / Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é muita tristeza que vem // Vem do luar no céu / Vem do luar / No mar coberto de flor, meu bem / De Iemanjá / De Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no céu, meu bem / Triste no mar”, canta Virgínia sagrando a tragédia de um povo.
Aqui Apolo e Dioniso, arcaico e moderno se liquefazem no canto da deusa sincretizada, núcleo de potência das diversas potencialidades constitutivas do Brasil. E, inconscientemente, Virgínia revocaliza tradições matriarcais historicamente silenciadas. “Brasil, é braseiro de rosas”, verseja Sousândrade. “Para apreciar corretamente a aptidão dionisíaca de um povo, pode ser que tenhamos de pensar não somente na música do povo, mas, com a mesma necessidade, no mito trágico desse povo”, aponta Nietzsche. “Só podemos entender o mundo orecular”, observa Oswald. "Bem mais além / Bem mais além do que o fim do mar / Bem mais além", canta a sereia Virgínia.

***

Canto de Iemanjá
(Vinicius de Moraes / Baden Powell)

Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem

Vem do luar no céu
Vem do luar
No mar coberto de flor, meu bem
De Iemanjá
De Iemanjá a cantar o amor
E a se mirar
Na lua triste no céu, meu bem
Triste no mar

Se você quiser amar
Se você quiser amor
Vem comigo a Salvador
Para ouvir Iemanjá

A cantar, na maré que vai
E na maré que vem
Do fim, mais do fim, do mar
Bem mais além
Bem mais além do que o fim do mar
Bem mais além

Mais um samba popular

$
0
0


Entre outros objetivos, o que mais me interessa aqui é (re)conhecer os "modos de pensar" (voz e escuta) embutidos na canção brasileira. E iluminar o instante em que o cancionista se torna neo-sereia por apontar/cantar a "gaia ciência", como José Miguel Wisnik intuiu e chamou atenção no texto seminal "A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil" (2001).
A eficácia do cancionista brasileiro se verifica na competência demonstrada no amalgamar "alta cultura", "folclore" e informação massificada e no disseminar do resultado através dos meios de mediação. Mas sempre volta a pergunta: como diferenciar canção "popular" e canção "folclórica" para além da relação preconceituosa e reducionista que as distingue ao defender que esta é "pura" (do interior) e aquela é menor porque industrial (urbana)?
Recordo aqui as palavras de Antonio Cícero e Marina Lima para o texto de apresentação do disco Fullgas(1984): "Somos brasileiros e estrangeiros. Somos estrangeiros porque a nossa verdadeira casa e a casa da nossa música não têm paredes, nem teto, nem cerca, nem fronteiras. Não vegetamos nem precisamos de raízes. / Mas nascemos aqui, aqui trabalhamos e escolhemos ser brasileiros. Por quê? Porque este país é a nossa casa. A força dele, como a nossa, não pode vir de nenhuma fonte pura. Fontes puras não existem. O Brasil vem da fusão de todas as águas, de todas as correntes culturais, da miscigenação. Por isso ele realmente mete medo em todos que sofrem de agorafobia. (...) Melhor para nós são a descoberta e a liberação dos desejos e gostos autênticos de cada um. / Nossa música é simples, deliberadamente simples e direta. Por isso mesmo ela é mais difícil para aqueles que se viciaram às velhas fórmulas. Sabemos que somos profundos demais e superficiais demais para essa gente. / Não há CAMINHO REAL para fazer algo que enriqueça o mundo. Por mais que certos setores da “vanguarda” sugiram uma evolução linear da Música, a verdade é que às vezes é do mais “vulgar” que vem o toque mais sutil."
Entende-se, embora não se justifique, haja vista o engenho transcriativo de Macunaíma, de Mário de Andrade, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Galáxias, de Haroldo de Campos, por exemplos, que, diante da supremacia da escrita, o argumento de que o registro escritural daquilo que é (em origem) oral promove inúmeras perdas para este. Mas e o registro sonoro-visual?
O fato de os cantos sagrados do ritual feminino do Jamurikumalu (Alto Xingu, MT) serem registrados por Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro para o filme As hiper mulheres (2013) tornam os cantos das índias menos "puros" e desprovidos de força ilocucionária sui generis? Ou esta "traição" à tradição oral torna esta mais sacralizada pela expansão de acesso ao conhecimento de sua existência?
"Conhecemos o longo e continuado esforço dos folcloristas (no Brasil como na Europa) de demarcação da fronteira entra música 'folclórica' e 'popular'. O campo do folclore musical instituiu um objeto em risco permanente de desaparecimento: 'poesia popular' e 'canção popular' definiram-se por uma dupla oposição às congêneres eruditas e aos produtos da nascente indústria cultural. A música popular nasce como objeto de estudo dentro do arco da pesquisa folclórica e foi o vínculo com os campos inter-relacionados dos estudos de folclore e da música erudita nacionalista que a tornou digna de atenção. Portanto, é impossível sondar os discursos sobre a música popular no Brasil sem recuar ao campo dos estudos de folclore", anota com precisão a professora Elizabeth Travassos, em "Pontos de escuta da música popular no Brasil" (in: ULHÔA, Martha. Música popular na América Latina. 2005, p. 96-97).
Se a partitura fortaleceu a ideia de autoria e revolucionou a fixação do fato musical, não resolveu a questão que sugere ser a voz de alguém cantando o signo da unicidade e da autenticação da existência deste alguém. Ou seja, mediatização e mercado, borrando os limites entre folclórico e massivo, também contribuem para o pensamento do tema.
Neste ponto, como não se lembrar do conto "Um Homem Célebre", de Machado de Assis, tão bem comentado por José Miguel Wisnik em Machado maxixe: o caso Pestana(2008)? "À primeira leitura, "Um Homem Célebre" expõe o suplício do músico popular que busca atingir a sublimidade da obra-prima clássica, e com ela a galeria dos imortais, mas que é traído por uma disposição interior incontrolável que o empurra implacavelmente na direção oposta" (p. 7).
A crise de ser/estar no cruzamento entre a polca (folclórico e popular) e "a grande música europeia" parece estar no cerne da formação da cultura nacional brasileira. O "complexo de Pestana" nos constitui, embora não queiramos admitir. "Como sabemos, o maxixe recalcado, virado samba, torna-se o paradigma musical de um Brasil mulato, nas primeiras décadas do século 20, num vasto processo de desrecalque, agora apologético, que constitui a imagem do país moderno sobre os escombros da escravidão, e que tem em Casa-Grande & Senzala um marco" (idem, p.92). Caetano Veloso joga com a questão ao encartar na contracapa do disco Circuladô (1991) a frase nuclear do conto de Machado: "Mas as polcas não quiseram ir tão longe".
"Vamos acabar com o samba / Madame não gosta que ninguém sambe / Vive dizendo que samba é vexame", canta João Gilberto. "E quem se julga a nata cuidado pra não quaiar (...) Pois o mundo real não é o Rancho da Pamonha", canta Criolo. "Eu bem sei que tu condenas / O estilo popular / Sendo as notas sete apenas / Mais eu não posso inventar // Por motivos bem diversos / Escrevi meu samba assim / Fiz o coro após os versos / E a introdução eu fiz no fim", cantou Noel Rosa no Coliseu dos Recreios (Lisboa).
Tendo sido cantado também por ninguém menos que Grande Otelo, o samba "Mais um samba popular" (1934), de Noel Rosa e Vadico, registrado por Ivan Lins no CD 3 do Tributo a Noel Rosa (1997), Ana de Hollanda, em Um filme (2001) e Arto Lindsay, em Noel Poeta da Vila (2009), entre outros, com suas torções temporais - "Fiz o coro após os versos / E a introdução eu fiz no fim" -, guarda também os gestos significantes da montagem da triangulação "amorosa, política e musical" (WISNIK, idem, p. 74) que ronda o Brasil.
A sala de cinema não é o contato com os índios Kuikuro, embora, sendo arte, queira mimetizar a experiência. Nem o registro sonoro da performance de um grupo folclórico, nem o CD, essa superpartitura, da performance vocal de um cantor em estúdio, ou "ao vivo", são o "momento sagrado" da emissão vocal. Mas, sim, signos da existência de seres viventes/presentes emissores/destinadores daquelas vozes. "A voz amada vem de trás do monte / Etérea ponte, cruza o oceano e o mar // Estrela Dalva surge no horizonte / tão perto e longe em mim o seu cantar", canta Caetano Veloso em "A voz amada".
Deste modo, "cantométrica, fonética, fisiologia e acústica musical, etnografias da fala e da música estão entre os passos na direção de uma abordagem que tome a voz como fenômeno biopsicossocial e integre som e sentido, interno e externo, naturee nurture", como também anota Elizabeth Travassos agora em "Um objeto fugidio: voz e 'musicologias'" (2008).

***

(Noel Rosa / Vadico)

Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular

Eu bem sei que tu condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar

Se acaso não gostares
Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação

Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim

Povo novo

$
0
0


O que caracteriza uma "canção de protesto" é a mirada politizada em atenção aos apelos contextuais externos: políticos, sociais, culturais. Nela a experiência individual do sujeito da canção se identifica de forma potencializada a mais não poder com o que a sociedade quer no momento. E assim a especificação do indivíduo adquire participação no/com o universal. E vice-versa.
Dito isso, penso que a "canção de protesto" serve para mobilizar as multidões e não as massas. Para distinguir uma categoria da outra ("multidão" versus "massa"), evoco aqui a diferenciação básica apontada por Michael Hardt e Antonio Negri já nas primeiras páginas do livro Multidão (2005): "A essência das massas é a indiferença: todas as diferenças são submersas e afogadas nas massas. Todas as cores da população reduzem-se ao cinza. Essas massas só são capazes de mover-se em uníssono porque constituem um conglomerado indistinto e uniforme. Na multidão, as diferenças sociais mantêm-se diferentes, a multidão é multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferença" (p. 13).
A "canção de protesto" vista por essa perspectiva, já que ela pode ser analisada a partir de outros aspectos, daí porque uso a expressão "canção de protesto" entre aspas, ou seja, para marcar um modo de uso, entre outros, é fundamental em momentos de "crise da representação". Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a "canção de protesto" dá vigor à diversidade macro-coletiva.
Dito de outro modo, o imediatismo contextual – que parece ser a gênese e a tônica da "canção de protesto" – não pode nivelar, reduzir, "tornar cinza" a multiplicidade, a polifonia dos apelos contextuais. O sujeito da "canção de protesto", ao ser cúmplice dos ouvintes múltiplos, plurais, diversos, precisa não se opor às vibrações da palheta de cores que lhe orienta, mas autenticar a unimultiplicidade. Por isso, nesse tipo de "canção de protesto", em que a canção é crítica política, não cabem palavras-de-ordem generalizantes, tais como: "o gigante acordou", "vem pra rua", "chega", "viva a revolução".
Vejamos o exemplo de "Povo novo", de Tom Zé e Marcelo Segreto, canção feita ao calor das manifestações que tomam as ruas das cidades do Brasil neste junho de 2013. Atento ao que grita a menina e o menino, o querer do sujeito da canção está em "gritar na rua / próxima esquina". "A minha dor está na rua / Ainda crua / Em ato um tanto beato, mas / Calar a boca, nunca mais! / O povo novo quer muito mais / Do que desfile pela paz / Mas / Quer muito mais", canta Tom Zé acompanhado de seu "violão de guerra".
O sujeito da canção sabe que sua voz representa a maximização dos protestos de lutas sociais que atravessam o país desde sempre. Portanto, para ele, "o gigante não acordou", pois sempre esteve vigilante: "A minha dor está na rua / Ainda crua", diz. O sujeito criado por Tom Zé sabe que as ruas estão franqueadas, e alerta: "Olha menino, que a direita / Já se azeita, / Querendo entrar na receita, mas / De gororoba, nunca mais".
Com a mesma verve de quem escreveu: "O ar que cada geração respira, em certa idade, é a REBELDIA"; questionando: "Ditadura, democracia, parlamentarismo, que nome daremos à nossa escravidão comum?" (O Estado de São Paulo, 07/11/1987); Tom Zé canta: "Já me deu azia, me deu gastura / Essa politicaradura / Dura, / Que rapadura!".
Tom Zé capta o "lixo lógico" armazenado no córtex das vozes das ruas, enquanto os jornalões investem na fetichização e encaminhamento conservador como seus "kits manifestações". “Quem não estiver confuso não está bem informado”, anotou o poeta Carlito Azevedo. É a este sujeito confuso, olhando os gritos da menina e do menino, a quem Tom Zé dá voz.
Confessadamente orientado pelo pensamento da socióloga Marília Moscou (Marília Moschkovich), Tom Zé reflete sobre os acontecimentos. E é nos versos "A minha dor está na rua / ainda crua" que Tom Zé condensa a crítica ao caráter perigosamente difuso das manifestações: "ato um tanto beato" versus "calar a boca, nunca mais".
Com "Povo novo", Tom Zé insurge como bússola e confirmação da desorientação do momento. Ele vai além da superficialidade das canções de circunstância, tal como "Chega" (2013), de Seu Jorge, Gabriel Moura e Pretinho da Serrinha – em que, tirando o clipe cujas imagens foram captadas nas ruas durante os protestos, nada, ou quase nada, resta além das palavras de "basta" cotidianas feitas para embalar festas: "Brasil, pinta a sua cara / Brasil, é uma chance rara (...) Brasil, tá na tua hora / Brasil, tem que ser agora".
Ou ainda "O Gigante" (2013), de Latino – em que, frases pseudo ufanistas tiradas dos cartazes dos manifestantes se aglutinam ao som do que parece ser uma batucada em estádio de futebol a servirem de pretenso convite ao levante público: "O gigante acordou / Está disposto a lutar (...) Salve o hino da vitória / Salve o povo lutador".
Sem contar os versos sedutores de "Viva a revolução" (2013), de Capital inicial: "Vai ser uma comoção internacional / Faça a sua parte / Nesses dias de gloria / Atravesse o espelho / Desligue a televisão / Então, vamos todos para a rua / Onde todos cantarão / Viva a revolução".
Entre outros, estes três exemplos mostram claramente suas diferenças tanto no campo das intenções (interesses), quanto no campo da crítica, em relação à "canção de protesto" que quer estar em frequência simultânea com os movimentos de resistência política e cultural, sobrevivente à massificação ideológica. Obviamente, tudo depende do "modo de usar", do uso feito de cada canção por cada ouvinte-cidadão, mas não podemos deixar de apontar tais distinções semânticas, semiológicas e intelectuais.
O conteúdo lírico da canção de Tom Zé encapsula a pele social: o sujeito se concilia com o ar da multidão na clave do político, da politização de seu olhar: "Olha menino, que a direita / Já se azeita, / Querendo entrar na receita". O sujeito de "Povo novo", ao saber que "o novo sempre vem" se preocupa e participa. Deste modo, ao apontar as especificidades internas (preocupações individuais), o sujeito da canção de Tom Zé dá vigor à diversidade macro-coletiva que caracteriza os movimentos de agora. Elege uma "outra cosmovisão: pensar é pão".

***

 Povo novo
(Tom Zé / Marcelo Segreto)

Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh

A minha dor está na rua
Ainda crua
Em ato um tanto beato, mas
Calar a boca, nunca mais! (bis)
O povo novo quer muito mais
Do que desfile pela paz
Mas
Quer muito mais

Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh

Olha menino, que a direita
Já se azeita,
Querendo entrar na receita, mas
De gororoba, nunca mais (bis)
Já me deu azia, me deu gastura
Essa politicaradura
Dura,
Que rapadura!

Bogotá

$
0
0


No encarte de Criolo e Emicida ao vivo (2013), Emicida agradece "antes de mais nada a meus orixás e antepassados que deram seu sangue para que hoje eu ocupasse este lugar". Sabemos qual é este lugar mencionado pelo rapper: o lugar de voz, de ser rapper. Em "Triunfo", por exemplo, Emicida explica este lugar: "Uns rimam por ter talento, eu rimo porque eu tenho uma missão / Sou porta-voz de quem nunca foi ouvido / Os esquecidos lembram de mim porque eu lembro dos esquecidos / Tipo embaixador da rua".
Abro um parêntese para lembrar alguns versos de "Um bom lugar", de Sabotage: "Um bom lugar / Se constrói com humildade é bom lembrar / Aqui é o mano Sabotage / Vou seguir sem pilantragem, vou honrar, provar / No Brooklin to sempre ali / Pois vou seguir, com Deus enfim / (...) / Bem vindo ao inferno, aqui é raro, eu falo sério / Pecados anticristos e mortal patifaria / (...) / Do ano 2000 pra frente / Homens do passado, pensando no futuro, vivendo no presente / Há três tipos de gente / Os que imaginam o que acontece, / Os que não sabem o que acontece, / E nós que faz acontecer, / O bolo, guacê".
A expressão utilizada por Emicida "A rua é noiz" (nó, nós, noise - barulho) condensa a ação do rapper-porta-voz: indivíduo que se expande no coletivo ao guardar na voz a reivindicação da coletividade, o canto do povo de um lugar historicamente posto à margem por certa parcela (a nata) da sociedade. Tema recuperado por Caetano Veloso, posicionado noutro ponto da questão, no verso "Neguinho que eu falo é nós". E criticamente ironizado por Criolo nos versos "E quem se julga a nata cuidado pra não quaiar".
"Se o rap se entregar favela vai ter o que?", pergunta Emicida, levando-nos a pensar sobre o texto "Depois daquilo tudo que passou em junho", de Marcus Vinícius Faustini, sobre as manifestações que estão afirmando o esgotamento da democracia representativa: "Muita gente disse que esse movimento não tinha líderes, o que não é verdade. Devemos aos coletivos de juventude urbana - de favelas, mobilidade, arte, direitos das mulheres, movimento negro, LGBT, anarquistas, movimento de luta por moradia - o núcleo duro das mobilizações. A vibrante cena social e cultural do país está nestes coletivos de vida e ação, com forte presença da juventude, que o poder público prefere não reconhecer como parceiros das necessárias transformações da sociedade, canalizando energia apenas para acordos com o grande capital". (Prosa & Verso, 06/07/2013).
O rapper é este catalisador da fusão entre vida/arte e ação. "Artista independente leva no peito a responsa, tiozão / E não vem dizer que não", canta Criolo agregando voz aos coletivos que, à margem das representações políticas constituídas, se mobilizam, se retroalimentam (afetando o macro) e reagem à brutalidade cotidiana. "Eu sou guerreiro do rap, sempre em alta voltagem / Um por um, Deus por nós, tô aqui de passagem / Vida loka, eu não tenho dom pra vítima / Justiça e liberdade, a causa é legítima", diz Mano Brown.
"Minha conclusão é que muito buso ainda vai pegar fogo / Aí, todo maloqueiro tem em si / Motivação pra ser Adolf Hitler ou Gandhi / E se a maioria de nóis partisse pro arrebento? / A porra do congresso tava em chama faz tempo! / Eu nasci junto a pobreza que enriquece o enredo / Eu cresci onde os muleque vira homem mais cedo", canta Emicida. O rapper incorpora a revolta, tal como o Parangolé P15 Capa 11 (1967) de Hélio Oiticica sugeria no corpo de Nildo da Mangueira.
A radicalização das referências - Hitler e Gandhi - sugere um rascunho de resposta à questão apresentada por Nestor Garcia Canclini no final do livro Culturas híbridas. Ou seja, como ser radical sem ser fundamentalista, na crítica social e no questionamento das pretensões do neoliberalismo tecnocrático?
Criolo e Emicida mostram que, no Brasil, em sua experiência sincrética, misturado ao samba, ao reggae, ao afrobeat, à ginga das quebradas, ou seja, sem negar a memória religiosa africana, o rap é polirrítmico, não tem o ranço segregacionista que o caracteriza nos EUA. Aqui, através da reação indígena e africana à imposição católica, não foi preciso abandonar os deuses, como no caso estadunidense do protestantismo. Nem sufocar os antepassados que deram seu sangue para que hoje o rapper ocupe seu lugar como o dedo na ferida, a voz do canto do povo de um lugar, a reivindicação cidadã.
E ao não encartarem as letras do rap, eles recuperam a tradição da poesia oral/vocal, dialogam com os repentistas, com os cantadores de feira, também estes cantores das agruras e místicas do povo de um lugar, instalam a rinha dos mc's, feita para o improviso, para o desafio. O rapper problematiza as fronteiras entre criação, produção e recepção; cultura, capitalismo e consumo. Ele é autor e produtor. Mediadas pelo capital, as tendências estéticas entram em crise diante da ação/resistência política progressista do rap.
Em "Bogotá" (Criolo) a referência literária é nítida. Mas, ao invés de "Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei" (Manuel Bandeira), temos: "Vamos embora para Bogotá / (...) / Vai ser melhor do que em Pasárgada / Agradar até o rei", deslocando a ação verbal para o convite plural e intensificando a mítica do lugar de origem, pois, se para o sujeito do poema "Aqui eu não sou feliz" e "Lá a existência é uma aventura", o sujeito do rap quer levar para lá toda a beleza que há aqui. Afinal, "Desde pequeno sabe o que é isso: / No fio da navalha / Brincar no precipício". "Se você quer amor, chegue aqui / Se quer esquecer a dor, venha pra cá / Pois a ilusão é doce como o mel / E cada um sabe o preço do papel / Quem tem / E de onde vem", canta.
Na gravação ao vivo, aos versos de Criolo se conectam os versos de Emicida evocando Iemanjá e Ogum como guias dos antepassados que orientam a ação do rapper: "(...) É canto que há no azul do vestido de Iemanjá / (...) / eu quero provar sabores de lá / (...) / minha vida cabe numa mochila / tá bom só um cantinho pra cochilar / a noite Ogum vai me vigiar".
Como vemos, "o rap ainda é o dedo na ferida" do elogio cego dos civilizados embasbacados com a luxuosidade de um Maracanã restaurado a altos custos em contraposição à realidade fora do estádio feito ilha. Fora da ilha, a polícia mostra "como é que pretos, pobres e mulatos, e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados". Fora da ilha, a lenta luta diária é o regime. E "o rap é a resistência; a voz das ruas, de todas as malocas".

***

Bogotá
(Criolo)

Vamos embora para Bogotá
Muambar, Muambei
Vamos cruzar Transamazônica
Pra levar, Pra freguês
Vai ser melhor do que em Pasárgada
Agradar até o rei

Se você quer amor, chegue aqui
Se quer esquecer a dor, venha pra cá
Pois a ilusão é doce como o mel

E cada um sabe o preço do papel
Quem tem
E de onde vem
Es qualité no exterior

Desde pequeno sabe o que é isso:
No fio da navalha, brincar no precipício
A vida e a morte, escolha o seu troféu

Pois cada um sabe o preço do papel que tem
E de onde vem
Es qualité no exterior

Emicida:
Ei, areia, espuma, sereia, escuna, mareia na bruma e a brisa, ah
pé no chão, de canto com a solidão e seu acalanto é o manto de
é canto que há no azul do vestido de Iemanjá
que quanto que ah faz toda vez, encontra paz na minha pequenez
eu quero provar sabores de lá
amores, olhares, lugares de ah
porque eu tô que não me aguento
é pouco tudo eu não condeno
é louco, tio
minha vida cabe numa mochila
tá bom só um cantinho pra cochilar
a noite Ogum vai me vigiar e eu vigiar

Dueto

$
0
0


Tenho usado o termo "indivíduo" para designar o "ser empírico", social, vivente, biológico, cotidiano. E os termos "sujeito cancional" e/ou "sujeito da canção" para apontar, guardadas as diferenças, o "eu-lírico", o "eu-poético", a voz que "fala" a canção de dentro da canção. Faço isso por uma questão didática, pois um não se opõe aos outros. Pelo contrário, como tenho tentado mostrar, a "voz da canção" é no "ser individual" quando este é singularizado por aquela, quando a subjetividade deste age para significar a potência daquela.
Estou dizendo que a subjetividade parte da massa, de quando o indivíduo transvaloriza algo feito para reduzi-lo à uma unidade – a canção popular de consumo, por exemplo – em cartaz potencializador de desejos. Ou seja, como também já tentei mostrar aqui, a neo-sereia, o cantor popular mediatizado, só existe na significação que o ouvinte faz do canto neo-sirênico. Dito de outro modo, a neo-sereia e o ouvinte existem quando este faz dos significantes emitidos pelo cantor um cartaz singular.
Deste modo, entramos nos usos feitos por Nietzsche para os conceitos de "imanência" e "transcendência". Bem como na definição de "comum" utilizada por Antonio Negri. É quando o indivíduo dispensa a transcendência do canto emitido às massas, "para todos" e transforma, por apropriação corporal, a canção em cartaz subjetivo que se comprova que os elementos imanentes só precisam da excitação dos sentidos para se mostrar. Quando o "canto comum" agrega subjetividades por fazer do espaço estético uma "vivência comum", entramos no "espaço real" significado pelo singular.
É sobre esses "cartazes singulares", enquanto elementos de composição da multidão, que Barbara Szaniecki disserta no precioso livro Estética da multidão (2007). Partindo da problemática da representação da corte de Felipe IV, da Espanha, até as manifestações globais contemporâneas, a autora enfrenta o complexo trabalho de verificar as características dos cartazes nos campos sociológico, político e ontológico, a fim de instaurar uma reflexão sobre as "manifestações de potência na democracia da multidão".
Szaniecki capta a tensão entre "imagens que agem" (de poder) e as "imagens que reagem" (de potência) e anota que: "A noção de potência vai além do conceito de resistência, no sentido de que não se limita a uma reação negativa (posterior) a uma ação positiva (anterior). Além de positiva, a potência enquanto poder constituinte implica movimento, enquanto o poder constituído ou institucionalizado provoca necessariamente o retorno à inércia" (p. 15).
As investigações de Szaniecki nos ajudam a aprofundar a ideia que defendemos de que é quando o indivíduo "reage" à canção, ao canto massificante, apropriando-se, traduzindo e incorporando ela na vivência pessoal, que ele se mobiliza em direção à potência do desejo. Quando o cantor deixa de ser um mero representante do transcendente (do mercado) e canta o ouvinte, cooperando com este na sua expressão imanente, ambos, cúmplices, fundam uma "estética constituinte" – liberadora, horizontal, sem soberania, fratriarcal.
E é exatamente a recusa à soberania transcendental, ou, melhor, o duelo entre transcendência e imanência aquilo que encontramos em "Dueto", de Chico Buarque. Gravada pelo próprio compositor em parceria com Nara Leão, para a peça O Rei de Ramos (1979), de Dias Gomes, a canção recebeu uma regravação de Izabel Padovani e Renato Braz (Desassossego, 2006).
A crise na representação se configura da seguinte forma: 1- O sujeito da canção aponta as "imagens de poder" (transcendência): "Consta nos astros / Nos signos / Nos búzios / Tá lá no evangelho / Garantem os orixás / Nos autos / Nas bulas / Nos dogmas"; 2- O sujeito afirma o desejo: "Serás o meu amor / Serás a minha paz"; 3- O sujeito rompe com as "imagens de poder", caso estas contrariem o desejo: "Danem-se os astros / Os autos / Os signos / Os dogmas / Os búzios / As bulas"; 4- A crise de representação é instaurada e uma nova afirmativa é posta: "Consta na pauta / No karma / Na carne / Passou na novela / Está no seguro / Pixaram no muro / Mandei fazer um cartaz"; e 5- A imanência é exaltada: "Consta nos mapas / Nos lábios / Nos lápis". Tudo-nada depende deles, dos amantes, da disposição do corpo-alma deles.
O sujeito canta sua posição diante da crise entre a representação transcendente (de fora, institucionalizada, burocrática, ordenadora) e a manifestação da potência imanente (de dentro, inacabada, experimental, de carne, osso e memória). O sujeito é mais que um espectador do "destino". E ergue cartaz próprio para afirmar isso: "Serás o meu amor / Serás a minha paz".
O gesto de erguer um cartaz, contrariando todas as representações que o limitavam, leva o sujeito da canção a se aproximar fraternalmente do ouvinte também desejoso de seguir os próprios desejos. Erguer o cartaz, cantar o desejo é aquilo que de "comum" existe entre sujeito cancional e ouvinte. Este se sente traduzido, "representado" por aquele, mas não transcendentalmente, e sim de forma horizontal, porque não há distância entre aquilo que os dois sentem, ao contrário, há um "arranjo interno" que os aproxima.
Portanto, o aporte que Barbara Szaniecki traz à nossa discussão, alicerçada nas leituras de Bakhtin, Foucault e, principalmente, Antonio Negri, aprofundam as questões que defendemos aqui. A multiplicidade da potência, geradora de cartazes, alimenta e é alimentada por aquilo que temos chamado de neo-sereia: o ser estético que age no cancionista humano. A eficácia do cartaz-canção está na imediata sintonia acesa entre cantor e ouvinte. Nenhum dos dois perde a identidade, eles se comunicam no canto de potências assemelhadas.
É por esta perspectiva que entendemos o sujeito de "Minha tribo sou eu", de Zeca Baleiro. Quando o sujeito "diz": "Eu não sou cristão / eu não sou ateu / Não sou japa não sou chicano / Não sou europeu / Eu não sou negão / Eu não sou judeu / Não sou do samba nem sou do rock / Minha tribo sou eu", mais do que negar todas essas bandeiras generalizantes, ou impor a exacerbação do individualismo cego, ele está reivindicando o direito à íntima subjetividade, que não se vê representada nem com isso, nem com aquilo que o sujeito elenca.
Segundo Szaniecki, "Em termos políticos, e possivelmente estéticos, o conceito de 'povo' – corpo social representado de forma transcendente – seria superado pelo conceito de 'multidão' – cooperação social expressa de forma imanente. Passamos de uma unidade representacional e transcendental abstrata para uma multiplicidade cooperativa e imanente concreta" (p. 110).
Seguindo esta linha de pensamento, os sujeitos das canções de Chico Buarque e Zeca Baleiro são símbolos metafóricos deste "ser da multidão", que não se apaga na massa, ao contrário, distingue-se e comunga com outros, também distintos e comuns, ao se misturar. Eis a demonstração do "desejo de uma vida comum", estudada por Antonio Negri. Para o autor, em 5 lições sobre império: "A multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação das diferenças, mas é o reconhecimento de que, por trás das identidades e diferenças, pode existir 'algo comum'" (p. 148). Ao que Barbara Szaniecki complementa: "A cooperação, comunicação e criação da multidão seria a materialização desse 'algo comum'" (p. 112).
Produto da indústria cultural, de massa, a canção popular não tem um "dono efetivo". Obviamente, não estou tratando aqui de direitos autorais, mas da potência comunicativa da canção. Estou querendo dizer que ao cantar (traduzir em canção) aquilo que o ouvinte "quer" ouvir, o cantor é neo-sereia que mobiliza e inflama o desejo. Enquanto expressão de potência, o cancionista coopera produtivamente na vida do ouvinte-expressão-de-potência. E este ouvinte se "organiza" e se manifesta no ato da audição. É o ouvinte na multidão quem transforma o verso cancional em potência.

***

 Dueto
(Chico Buarque)

Ela: Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ele: Consta nos autos
Nas bulas
Nos dogmas
Eu fiz uma tese
Eu li num tratado
Está computado
Nos dados oficiais
Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ela: Mas se a ciência provar o contrário
Ele: E se o calendário nos contrariar

Os dois: Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se

Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos
    
Os dois: Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz

Ele: Consta na pauta
Ela: No karma
Ele: Na carne
Ela: Passou na novela
Ela: Está no seguro
Ele: Pixaram no muro
Ele: Mandei fazer um cartaz

Os dois: Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ele: Consta nos mapas
Ela: Nos lábios
Ele: Nos lápis
Ela: Consta nos Ovnis
Ele: No Pravda
Ela: Na vodca

Não tenho medo da morte

$
0
0


Quando perguntado sobre o que seria o tempo, Santo Agostinho respondia: "Se ninguém me perguntar, eu sei. Se eu quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei". O entrave entre o intuir e o traduzir em palavras levantado por Santo Agostinho nos sugere o quão difícil é definir o tempo de modo a dar conta de sua complexidade natural, psicológica, social. Temos um conhecimento intuitivo do tempo.
Como apontar aquilo que poderia ser o tempo diante da realidade objetiva (o passar sucessivo dos milésimos de segundos do relógio), a intuição individual da intervenção do tempo no humano que somos (e vice-versa) e os acontecimentos específicos do momento histórico em que vivemos? Portanto: A qual tempo me refiro quando quero falar sobre o tempo?
O certo é que nem todos os tempos (e aqui já aparece o plural do termo) são dignos de destaque. Voluntária ou involuntariamente, esquecemos e/ou recalcamos períodos, épocas. Se o passado, que é o único tempo que existe, ou sabemos existir, porque lá já estivemos, está perdido e o futuro deve ser (intuição de desejo) o que no passado era apenas uma promessa, resta-nos lembrar, viver e esperar no presente.
O presente, por sua vez, é um instante tão comprimido que quando acabo de digitar a palavra "presente" ele já se tornou passado. O tempo depende da memória individual e coletiva. E nós precisamos dessa memória para existir no tempo.
Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia antropofágica) Oswald de Andrade anota: "A ciência e a técnica procuram produzir na terra o céu longa e demasiadamente prometido pelo Messianismo" (p. 185). Na modernidade, com sua ousadia (coletivamente engendrada) de pensar a realização do futuro desejado não mais no campo da religião (pós) e sim da terra (aqui), mediante a valorização da técnica, tudo passou a contar e a ser valorizado em termos de produção, gerando a aflição da sensação de aceleração do tempo, a fim de que o investidor obtenha retorno rápido.
No conhecido texto "O narrador", a partir da experiência da guerra e do avanço da técnica, Walter Benjamin escreve sobre esta mudança de perspectiva em relação àquilo que importava e que deixa de importar: "Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano".
Benjamin aponta para as mudanças bruscas e repentinas nas referências do indivíduo e mira no capitalismo especulativo da nossa sociedade de consumo (em que poucos podem consumir). As novidades, nem sempre desejáveis, destroem as referências do passado, quando não feitas à vida criativa. O novo pelo novo e a necessidade de ter o "sempre novo" transformam a vida em uma interminável sucessão de meios cujas finalidades estão perdidas em si.
A aceleração que os meios promovem nos acontecimentos (fazemos cada vez mais coisas dentro de uma mesma fração de tempo), as tais técnicas de reprodução criticadas por Benjamin, porque extinguiriam a "aura" dos objetos feitos agora em série, implode a nossa capacidade de esperar e, consequentemente, de desejar. No texto "Experiência e pobreza", Benjamin anota: "Essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade". Daí as depressões, as melancolias, os fatalismos.
Sobre este ponto, Maria Rita Kehl escreveu em O cão e o tempo: "O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das crenças que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho investigativo e criativo que caracteriza seus precursores renascentistas, sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas ações. Daí a relação entre a melancolia (pré-freudiana) e o fatalismo, sentimento de insignificância do sujeito como agente de transformações, tanto na vida privada quanto na política” (p. 100).
As esperanças projetadas no futuro dizem muito do presente, já que aquele traduz as angústias deste. Assim como o presente é o panteão das angústias do passado. Deste modo, se "o futuro já começou", onde fica o presente? Suprimir quaisquer dos tempos causa pane no viver.
Baseadas nas leis constantes da natureza, as técnicas da física possibilitam prever o tempo, mas não a inconstância do humano no tempo. É no esquecimento da tradição que reside a desvalorização do futuro e do presente. Para Benjamin, o progresso promovido pelos meios não engendra, de fato, progresso algum, posto que não promove a emancipação do homem, nem o fim das desigualdades.
Voltando ao texto "O narrador", Benjamin escreve que "a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos".
Claro está que as perdas do tempo social analisado por Benjamin diferem radicalmente das perdas do tempo social brasileiro, basta olhar para a tradição (a relação com o passado) das duas sociologias. Daí também a perplexidade dos teóricos estrangeiros diante de nossa capacidade em transformar "lágrima em canção".
Penso em tudo isso quando ouço Gilberto Gil cantar "Não tenho medo da morte" (Banda larga cordel, 2008). Qual o outro narrador-cancionista para cantar as angústias e os prazeres diante do tempo que não para arrastando-nos ao nosso caminho inevitável à morte?
Em diálogo com o sujeito de outra canção de Gilberto Gil, o sujeito da canção "Não tenho medo da morte" observa que o futuro enquanto dimensão do tempo é sempre o mesmo: "mistérios sempre há de pintar por aí". Por um lado, o futuro é a diversidade de possibilidades, por outro lado, não há como fugir da morte: um presente do futuro - um estranho presente, pois, "a morte é depois de mim".
O medo que assombra o sujeito da canção é o medo de morrer antes de acabar o que lhe cabe viver. Morrer dentro da vida: da morte chegar demasiado cedo. Canta: "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui (...) Não tenho medo da morte / mas medo de morrer, sim / a morte e depois de mim / mas quem vai morrer sou eu / o derradeiro ato meu / e eu terei de estar presente".
Noutro trecho da letra, ouvimos: "A morte já é depois / já não haverá ninguém / como eu aqui agora / pensando sobre o além / já não haverá o além / o além já será então". O sujeito percebe que estamos invariavelmente presos ao presente, mas olhando sempre para o depois. "E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo / Tempo tempo tempo tempo / Não serei nem terás sido / Tempo tempo tempo tempo", canta Caetano Veloso, na sua "Oração ao tempo".
Objetivamente, o aqui e o agora não existem. Como entender o "Obrigada, senhores, obrigada por estarem aqui, hoje", que Maria Bethânia me diz através do disco, senão pela minha disposição ao pacto com o eterno presente das canções que, mesmo mediatizadas, conectam-se à minha memória: lembranças e esperanças. Para que o sujeito cancional surja o tempo de sua existência precisa coincidir com o tempo do ouvinte.
O tempo da "fala presente" do sujeito cancional é o futuro do pretérito: poderia ser, tinha tudo para ser, mas não será, mesmo estando preservado(?) da ação do tempo pela técnica. No ouvinte, no entanto, fica a intuição de que aquilo é e pode ser. Eis o tempo complexo das canções que a canção de Gilberto Gil, ao tematizar a morte, revela.
O tempo exige novos posicionamentos frente ao eterno retorno não do mesmo, mas do diferente. "Não me iludo / Tudo permanecerá / Do jeito que tem sido / Transcorrendo / Transformando", canta Gil noutra canção sua. No modo como Gilberto canta a mensagem de "Não tenho medo da morte" reside a eficácia da canção: calmo, sereno, em ato de espera, de desaceleração - performance de um cancionista que "se quiser falar com Deus" sabe que precisa "calar a voz e encontrar a paz".
A espera é a vontade que se encaminha para o exterior. Não para o futuro, mas para a exterioridade do presente em sua expectativa modelar do acontecimento esperado. "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui / na vida, no sol, no ar / ainda pode haver dor / ou vontade de mijar", canta Gil: cancionista compositor de destinos.

***

 Não tenho medo da morte
(Gilberto Gil)

não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar

a morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?

não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou

então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida

Beira mar

$
0
0


Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia antropofágica) Oswald de Andrade anota que o canibalismo é um tipo de antropofagia. Porém, enquanto o segundo trata-se de um rito, o primeiro acontece movido pela fome e pela gula. Ambos caracterizam uma "fase primitiva de toda a humanidade" (p. 138).
A antropofagia por fome se contrapõe à antropofagia ritual naquilo que esta tem de transformar o tabu em totem: "Do valor oposto, ao valor favorável". "A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu", escreve Oswald (p. 139). E o que é o tabu, "senão o intocável, o limite?", pergunta-se.
O indivíduo ocidental é educado a jogar fora toda prosódia e todo saber oral, em benefício do racionalismo. No entanto, nas coerentes palavras de Tom Zé: "Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!" (Revista Bravo! 179, jul/2012).
O "lixo lógico" não é outro senão a promoção do "tabu em totem", a construção inconsciente de uma "gaia ciência", de um saber não catalogado e que escapa às ciências instituídas. Saber que se cria e se alastra sem o controle da razão. Eis o que venho defendendo aqui em relação ao saber implícito à canção popular brasileira, com suas profusões de sujeitos cancionais.
Como já escrevi: o sujeito cancional é uma categoria da performance vocal; é a entidade - primitiva - que surge no momento exato em que a canção é executada por alguém e ouvida por outro alguém conectado ao primeiro via "estados-de-espírito" no instante do tempo que dura a canção. Daí a riqueza de nossa canção popular e suas múltiplas temáticas totêmicas, favorecedoras da pluralidade dos sujeitos cancionais e, consequentemente, da "gaia ciência".
Parafraseando Nietzsche, podemos afirmar que o habitat dos grandes problemas é a canção, na rua. Ao menos no Brasil, onde tradicionalmente a canção dá voz a saberes os mais diversos, seja por fome, seja por ritual de inserção íntima na vida coletiva distante da divisão do trabalho e da organização da sociedade em classes. Dito de outro modo: Não falta canção para mimar o brasileiro e fazê-lo se sentir incluído, igual.
Isso é resultado da devoração, da antropofagia que nos une. Achar que um tipo ou um gênero de canção é ruim e/ou aliena o indivíduo é subestimar a competência antropofágica do indivíduo. Aliena em que? Para que? Em detrimento de que? Eis as perguntas que devemos fazer diante do latente preconceito: "(...) mas para outros não existia  aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina", canta o narrador de Galáxias, de Haroldo de Campos.
O fato é que o saber dos "analfabetos em Aristóteles (os "analfatóteles"), nas palavras de Tom Zé, impregnam a canção mediatizada com brilho e força. Seja o funk com a totemização do sexo, seja o rap com a totemização da violência, por exemplos.
É preciso pensar a dívida para com este saber não científico. É este débito - que dessacraliza o intocável para lhe restituir a beleza - que move, por exemplo, o grupo Cabruêra, com suas ressignificações da cultura popular oral nordestina: prenha da cultura moçárabe e dos cantadores das feiras livres.
O som do Cabruêra é o processamento de dados vocais, ainda transmitidos vocalmente na rua, na "festafeira no pino do sol a pino", como canta o narrador de Galáxias, em sua lagrimalegria esperançosa por suporta a condição presente.
Calcado na mistura inventiva da música nordestina com os sons do oriente, o disco Nordeste oculto (2012) recupera a promiscuidade originária. Aboio e microtonalidade, cítara e safona, xote e raga, a feira de Campina Grande e um mercado público do Oriente Médio em devoração antropofágica, ritual.
O disco é uma viagem sonora rica, complexa e orgânica (simples, natural). Mas, para continuar no tema da tradução do tabu (o intocável) em totem, gesto comum nas culturas antropófagas e tendentes ao matriarcado, destaco "Beira mar", de Alberto Marsicano, Arthur Pessoa, Pablo Ramires, Edy Gonzaga e Leo Marinho, e "Marujo antigo", de Oliveira de Panelas. Vindo esta antes daquela na sequencia do disco, aquela é a resposta deformativa e sagradora desta.
O grande repentista-trovador Oliveira de Panelas (canto-quase-fala e viola) tem sua função de cantador ressemantizada na canção do Cabruêra. O saber que lhe constitui e que ele oferece à cultura é absolvido pelo Cabruêra (percussão, violão, teclados, guitarra, acordeom, viola, baixo) que, por sua vez, devolve a tradição à tradição: desreprimindo o desejo.
"Cantador pra cantar beira mar comigo / tem que saber bem do oceano", canta do sujeito de "Beira Mar" após o sujeito de "Marujo antigo" ter dito "além de poeta sou marujo antigo / conheço esses mares por dentro e por fora (...) sou filho das águas convivo com elas / cantando galope na beira do mar".
O encontro hibridizador dos dois poetas - do "marujo antigo" com o "beira mar"; daquilo que é dito com o modo como é dito - revela a tradição em movimento: "lírica viagem de brisa e luar". O que ouvimos não chega a ser um desafio no sentido clássico do termo, mas um diálogo com a atemporalidade das sabedorias populares. Algo só possível na eficácia do gesto devorador do sujeito cancional criado pelo Cabruêra.

***

Marujo antigo
(Oliveira de Panelas)

Além de poeta sou marujo antigo
Conheço esses mares pode dentro e por fora
Dos raios poentes à luz da aurora
O ritmo das águas viajam comigo
Sereias de sonhos entendem o que eu digo
Na lírica viagem de brisa e luar
O mar nordestino é meu reino é meu lar
Não vejo fronteiras nas suas procelas
Sou filho das águas convivo com elas
Cantando galope na beira do mar

Beira mar
(Alberto Marsicano / Arthur Pessoa / 
Pablo Ramires / Edy Gonzaga / Leo Marinho)

Cantador pra cantar beira mar comigo
Tem que saber bem do oceano
Dos seus movimentos não terão engano
A fim de livrar-se de qualquer perigo
Além de poeta sou marujo antigo
Conheço galope na beira do mar

Sangue, água e sal

$
0
0


Cantar uma canção implica em performatiza-la - torna-la concreta pela gestualidade vocal – e mima-la, em um ato metacancional, injetar vida (calor) na canção. Cantar uma canção é tencionar e misturar matéria e espírito, sendo este um produto do cérebro (da consciência) e do coração (dos riscos).
Em sua investigação sobre "'canção ruim', voltada para a satisfação de exigências, que por definição são banais, epidérmicas, imediatas, transitórias e vulgares" (p. 295-296), Umberto Eco, em "Canção de consumo" (ver Apocalípticos e integrados), sugere que é preciso ter cuidado na análise das questões relacionadas à crise do sujeito versus as novas tecnologias, para que não caiamos nem no elogio vazio da técnica, nem no preconceito ou na nostalgia vã.
É preciso pensar a complexidade do problema que distingue cultura de entretenimento e cultura como alimento do espírito, pois é na formação cumulativa das experiências - entre o entreter e o pensar – que o indivíduo integral se rascunha, vive e atua.
Se a cultura como alimento do espírito nos sugere a emancipação do indivíduo, não podemos esquecer que a técnica (as modernas possibilidades de gravação e reprodução de uma canção, por exemplo) é um produto (fruto) da marcha do humano. Para o bem e para o mal.
Se hoje, com a dificuldade que desenvolvemos sobre a duração na capacidade de atenção, já que há inúmeros apelos e intensidades exigindo nosso olhar e nosso ouvido – podemos mudar de faixa musical em um toque –, o cérebro pulsa em inúmeras frequências, parece que estamos diante do fato de que as nossas competências cognitivas apontam para a afirmação nietzschiana de Paul Valéry: "O mais profundo é a pele".
E é também Valéry quem anota: "– Adeus, fantasmas (Leonardo, Leibniz, Kant, Hegel, Marx)! O mundo já não precisa de vocês. Nem de mim. O mundo, que batiza com o nome de progresso sua tendência a uma precisão fatal, procura unir aos benefícios da vida as vantagens da morte".
Por sua vez, Umberto Eco escreve: "O drama de uma cultura de massa é que o modelo do momento de descanso se torna norma, faz-se o sucedâneo de todas as outras experiencias intelectuais, e portanto o entorpecimento da individualidade, a negação do  problema, a redução ao conformismo dos comportamentos, o êxtase passivo requerido por uma pedagogia paternalista que tende a criar sujeitos adaptados". (idem, p. 303).
Mas, como afirmar com Umberto Eco que "a música de consumo é um produto industrial que não mira a intenção de arte, e sim à satisfação das demandas do mercado" (idem, p. 296) perante a audição de Alice Caymmi cantando "Sangue, água e sal", de Alice Caymmi e Paulo César Pinheiro (Alice Caymmi, 2012)?
Ao que tudo indica, haveria uma hierarquia dentro da cultura do entretenimento, em que uma canção seria mais ou menos arte, numa escala hipotética e infrutífera diante da competência humana e individual de ressemantizar os objetos vindos da estrutura comercial da sociedade de massas.
Mesmo mediatizada e a mercê do sistema econômico, a canção popular não se furta das marcas e cicatrizes da tradição, do tempo, da história e da garganta de quem lhe deu vida. Guardada em um arquivo eletrônico, ela aponta que as tecnologias transformam o homem (ingênuo e complexo), porque vindas deste.
Em "Sangue, água e sal", a voz de Alice Caymmi e o acompanhamento melódico derivado da mítica sirênica se unem para figurativizar a imagem que estampa a capa do disco: uma neo-sereia surrada pelo tempo, multiplicada em outras pela breve história do sujeito e ressacada por temer Yemanjá.
A rainha do mar aparece aqui como fantasmagoria da fusão amor-morte, da vida que só existe no risco de morrer, se afogar, desaparecer: "Mergulhar no mar, não saber voltar / se deixar levar pela maré". O sujeito cancional que surge na interpretação de Alice rompe a dor com efeitos eletrônicos, ciranda a ilha com técnica e quer morrer para viver com Yemanjá - a grande sereia, mãe da sereia Alice.
"Sangue, água e sal" trai e não trai a "lógica das fórmulas" identificadas por Eco nas canções de consumo. Sim, há um tempo que se adéqua ao tempo breve das canções de consumo. Mas o modo e o cuidado identificado pelo ouvinte na execução eternizadora (porque fixa, gravada) da canção desperta um "expandir para dentro", um viver em si, uma quietude desestabilizadora que promove o pensamento, a concentração. A artesania (a singularidade) está na voz de quem canta, é isso que alguns teóricos do elogio à escrita não percebem.
Ou seja, não só de escrita e leitura vivem as experiências do indivíduo. Ele não sai sem marcas. E este processo é individual e singular, mexe com fissuras e crivos únicos. Por isso o erro das generalizações quando o assunto é arte, conhecimento e construção do eu. 

***

Sangue, água e sal
(Alice Caymmi / Paulo César Pinheiro)

À luz do luar
flores de Yemanjá
cobrem o altar do meu amor

Sangue, água e sal
o amor não tem dó
de quem não tem medo de amar

Pode se afogar, desaparecer
quem nunca temeu Yemanjá
Mergulhar no mar, não saber voltar
se deixar levar pela maré

Tia Nastácia

$
0
0


No momento em que se discute se o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, deve ou não ser recolhido "à escuridão do ventre de onde (para alguns) não deveria nunca ter saído", Adriana Partimpim ressurge cantando "Tia Nastácia" no seu disco Tlês (2012).
A canção é uma adaptação que Dorival Caymmi fez de outra canção também sua "História pro sinhozinho". Se nesta tínhamos uma certa Sinhá Zefa, naquela, feita para integrar a trilha sonora do seriado Sítio do Picapau amarelo (1977), temos a presença de Sinhá Nastácia.
Do mesmo modo que fez ao tematizar a morte ("Saiba", no disco Adriana Partimpim - 2004) e o amor entre Alexandre e Hefestião ("Alexandre", Dois - 2009), em atitude que parece pouco comum a uma criança, mesmo em tempos de internet, Partimpim não dá respostas, ao contrário, complexifica a questão, posto que ao cantar "Tia Nastácia" insinua reconhecer a força da personagem na história da literatura e da formação da cultura brasileira.
A pergunta é: negar a existência do racismo, ocultar ele dos olhos das crianças – pares de Partimpim – promoverá sua extinção, ou simplesmente servirá apenas como mais uma máscara à hipocrisia? Partimpim parece dizer "não" ao não, à proibição dos livros. Afinal, precisamos manter os olhos cheios de esperança por uma educação livre, laica e plural. É preciso discutir todos os temas.
Sim, ao que tudo indica Lobato disse sentir inveja dos norte-americanos geradores da Ku Klux Klan. No entanto, o simples gesto de taxar o autor de racista não resolve a segregação disseminada, além de ser uma redução precária da obra total, densa e ampla do autor. É como dizer hoje, algo anacronicamente, que Gregório de Matos era racista, pela forma como "tratava" as mulheres negras em sua poesia, lá nos idos seiscentos. Ou que Machado de Assis era racista por, aparentemente, não tratar do tema da escravidão. Texto é contexto, aprendemos isso desde cedo.
E como não chamar para a conversa a canção "Sinhá", de Chico Buarque e João Bosco, cujos versos "(...) Por que talhar meu corpo / Eu não olhei Sinhá / Para que que vosmincê / Meus olhos vai furar / Eu choro em iorubá / Mas oro por Jesus / Para que que vassuncê / Me tira a luz (...)", por exemplo, em que uma escrava roga clemência, argumentando-se já europeizada, tematizam a formação complexa do povo brasileiro?
Assim como as demais formas de preconceito e discriminação, e se Aqui ninguém é branco, como tão lucidamente defende a professora Liv Sovik em seu livro, o racismo – crime inafiançável – precisa ser reconhecido e debatido. "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (...) É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte", anotou Joaquim Nabuco.
Na canção de Caymmi Sinhá Nastácia é celebrada como aquela que nina: entoa a canção necessária à construção da imaginação do sinhozinho. Contraponto de Dona Benta (de formação europeia), Nastácia – “negra, de beiços grandes, assustada e medrosa, cozinheira de mão cheia” – enche oSítio do Picapau Amarelo com as narrativas do folclore brasileiro.
É por este viés que podemos dizer que a canção "Tia Nastácia" trabalha com a polifonia: há uma primeira voz que narra a cena da "hora em que o sol se esconde / E o sono chega / [e] O sinhozinho vai procurar / A velha de colo quente / Que canta quadras e conta histórias"; uma segunda voz que se desdobra em duas: a voz do sinhozinho pedindo canção e a voz do narrador da canção apresentando Sinhá Nastácia – "que conta história / sabe agradar / que quando nina / Acaba por cochilar / [e] vai murmurando / estórias para ninar"; e uma terceira voz que é a voz da própria Sinhá Nastácia cantando as tais estórias cheias de memória e musicalidade de um povo: "Pêxe é esse meu filho / Não meu pai / Pêxe é esse mutu, manganem / É a toca do mato guenem, guenem / Suê filhoê  / Tocaê marimbaê".
Fica claro e cabe lembrar que a polifonia é a coexistência e a interação de várias vozes em um mesmo plano narrativo. A polifonia complexifica a estrutura, como podemos perceber na canção de Caymmi, com a mescla dos registros conversacionais exigindo do ouvinte a atenção para a troca e a interação entre os turnos. Além disso, não há uma narrativa encadeada, favorecendo a mistura e a justaposição de informações diferentes. O que, por sua vez, dificulta e amplia a definição da categoria do “autor” daquilo que é dito. E como não pensar neste artifício estético como um instrumento poderoso de análise da cultura brasileira?
Em "Tia Nastácia" a voz do narrador convive com a voz da velha de colo quente e, penso, com a voz do sinhozinho embevecido. Repito de outro modo: a canção desloca a personagem de seu contexto pretensamente preconceituoso e discriminatório e a posiciona no lugar exato de quem fornece canção à vida de alguém. Lugar que, de fato, segundo muitos pesquisadores, foi/é ocupado pelas escravas e ex-escravas: substitutas legítimas das mães biológicas, estando estas mais preocupadas com outras posições na sociedade.
Sinhá Nastácia aparece na maior parte da obra de Lobato como a reprodução da Mammy norte-americana – matrona, geralmente solteira e dócil feita para cuidar da cria dos brancos. Na canção, por sua vez, percebo uma quebra na relação de superioridade que vai do sinhozinho à ex-escrava: aqui a subordinação é amolecida. O uso do "sinhá", redução carinhosa e brasileira para "senhora", é índice disso.
Nastácia é a mantenedora da vida, da canção. Importa lembrar que das mãos de Tia Nastácia nasceu Emília: a boneca-gente, esperta e atrevida – mímeses (pré-representação) da Partimpim da capa do disco Tlês? Por falar nela, a postura da mão da Partimpim-boneca tanto remete ao 3 (tlês), quanto ao gesto de “ok”: tudo certo. Mas também é índice do “gesto do conhecimento” na posição de lótus para meditação. O que poderia explicar o clima mais cool (para dentro) de Tlês, um tanto diferente dos discos anteriores.
Talvez por investir demais na “voz” do sinhozinho e no acalanto contido na letra, a versão de “Tia Nastácia” de Partimpim não tem o pulso vibrante da versão de Mariene de Castro (Tabaroinha, 2012), que lindamente impregnou a canção de extratos sonoros e gestualidades vocais que iluminam a canção por dentro, investindo no axé (energia, poder, força) da “voz” de Nastácia. Partimpim se aproxima mais da versão de 1977 do próprio Caymmi e da que Maria Bethânia fez para o disco Pirata (2006), onde canta “História pro Sinhozinho”, versão original da canção, com a presença de Sinhá Zefa, ao invés de Sinhá Nastácia.
"Tia Nastácia" na voz de Partimpim "É Gilberto Freyre em sua glória", dirá Adriana Calcanhotto, cavalo de Partimpim. Seja como for, o racismo na obra de Lobato não pode ser motivo para a proibição de livros. Mas, em atitude superiormente interessante, deve servir de mote para debates entre pais e filhos, educadores e alunos, sociedade e indivíduos. É isso que Partimpim me diz quando a ouço cantar "Tia Nastácia". Isso sim auxiliará positivamente na formação das crianças: pares de Partimpim – a criança que ainda não domina erres e eles, daí o tlês título do disco, mas já sabe o quanto de ensinamento, amor e alegria as histórias da Sinhá Nastácia podem trazer.

***

Tia Nastácia
(Dorival Caymmi)

Na hora em que o sol se esconde
E o sono chega
O sinhozinho vai procurar
Hum hum hum
A velha de colo quente
Que canta quadras
Que conta história para ninar
Hum hum hum

Sinhá Nastácia que conta estória
Sinhá Nastácia sabe agradar
Sinhá Nastácia que quando nina
Acaba por cochilar
Sinhá Nastácia vai murmurando
Estórias para ninar

Pêxe é esse meu filho
Não meu pai
Pêxe é esse mutu, manguenem
É a toca do mato guenem, guenem
Suê filhoê tocaê marimbaê

No mundo do lua

$
0
0
Porque a performance vocal trabalha com a energia dos mitos, sonhos e paixões do cantor e do ouvinte, quando Gilberto Gil interpreta "No mundo da lua" (para a trilha sonora do filme Gonzaga – de pai pra filho, 2012), o compositor conecta-se ao Lua, vira o mundo deste de pernas para o ar, lançando-se também no ar como presentificação material daquilo que o outro (homenageado) é.
É na performance vocal de quem canta o canto de Luiz Gonzaga que as canções – imateriais – do rei do baião (sobre)vivem a engendrar vida nos signos da seca, do Nordeste, do Brasil. Na letra da canção, o canto tanto faz referência às canções e ao modo de cantar de Luiz Gonzaga, quanto ao canto-lugar: "E o povo canta o canto que eu cantei / Não importa o certo e o errado, o bem e o mal", diz o sujeito da canção.
Gilberto Gil, que a partir do contato com a Banda de Pífanos de Caruaru se encheu de novas perspectivas para pensar junto com Caetano Veloso a Tropicália como um projeto estético brasileiro, rompe a separação entre sua persona e a persona de Gonzaga através da canção, do canto do povo de um lugar.
Cavalo de Gonzaga, Gilberto Gil é Gonzaga presentificado, ambos feitos de canção. E o que era para ser uma homenagem transmuta-se em contato e revelação. Pela voz por vezes embargada de Gil no programa de TV, Gonzaga se comunica de novo com seu povo. Gonzaga-sujeito-cancional reconhece no milagre divino o poder de cantar a felicidade da existência. E renega tudo que não for motor de canção: "Se o milagre acontecesse de eu voltar / Sem poder sair cantando por aí / Juro que eu pedia a Deus pra me polpar / De um milagre assim tão besta, tão chinfrim", canta via Gil.
E, assim, a primeira pessoa (Luiz) soa como eu (Gil) sou, a segunda pessoa (Gil) soa como tu (povo que canta o canto que Luiz cantou) és e a terceira pessoa (o mesmo povo) soa como ele (Luiz) também. Em um ciclo infinito de filigranas que se conectam e se plasmam umas às outras constituindo a esperança de um dia não ser mais triste não.
Se por um lado Vinícius de Moraes cantou que "o samba é a tristeza que balança / e a tristeza tem sempre uma esperança / (...) / de um dia não ser mais triste não", e por outro lado o grupo Falamansa cantou que "toda mágoa que passei / é motivo pra comemorar / pois se não sofresse assim / não tinha razões pra cantar", o canto de Luiz mostrou que também o baião, outra forte e potente matriz sonora identitária do Brasil, afirma que "o meu cantar é um soluço / a galopar no maçapê".
Tal e qual Jackson do Pandeiro que dizia "eu quero ver a confusão / olha aí o samba-rock meu irmão", Gonzaga soube mirar, estilhaçar e condensar as sonoridades de sua região a um nível de significação e entendimento universais. Mostrou de onde vem o baião: "Vêm debaixo do barro do chão". De onde "suspira uma sustança sustentada por um sopro divino".
"O termo 'baião', sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas nordestinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a afirmação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar é recitativa e monocórdia, o 'baião' é a única sequência rítmica e melódica. O grande estalo de Luiz Gonzaga foi de perceber a riqueza desse trechinho musical, de sentir que ele carregava em si a alma nordestina, e todas as influências que marcaram a música do Nordeste", anota Dominique Dreyfus no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga.
E é este sopro milagreiro que faz Gilberto Gil cantar "No mundo da lua". Posto que é de lá, das noites do sertão, que vem os elementos constituintes da canção (letra, música e voz), Gilberto Gil ao cantar é Luiz, assim como o povo ao cantar as canções gravadas é Gonzaga xaxando para xaxar, cantando para cantar: de novo. "Só faz milagres quem crê que faz milagres / como transformar lágrima em canção", diria Zeca Baleiro.
"Saudade o meu remédio é cantar", parece ser o mote de Gilberto Gil e do povo que mantem acesa a fé na festa disseminada por Gonzaga. E assim a tristeza balança, a vida se enche de graça, mesmo sem sentidos aparentes para tanta miséria e dor. Lágrima em canção: "Tudo em volta é só beleza / céu de abril e a mata em flor". E o milagre acontece: Gonzaga está. E junto com tudo o que o seu canto e suas canções mimetizam.
Fustigados pela seca e pelo eterno vento, o sujeito cancional criado na voz de Gil se une ao sujeito da canção que Gonzaga pseudo-psicofonicamente recita. "Que vocês ainda possam me escutar / Através das minhas velhas gravações / É sinal que o mundo vai continuar / A viver de mitos, sonhos e paixões". Os versos cantados por Lua indicam que pela materialidade dos arquivos sonoros gravados é permitido ao cantor viver eternamente. Além do bem e do mal. "A canção do povo alegre não tem fim", diz Gil.


***

No mundo do lua
(Gilberto Gil)

Se o milagre acontecesse de eu voltar
E o meu vulto aparecesse no sertão
E o povo me pedisse pra cantar
E na hora me faltasse o vozeirão

Se o milagre acontecesse de eu voltar
Sem poder sair cantando por aí
Juro que eu pedia a Deus pra me polpar
De um milagre assim tão besta, tão chinfrim

Afinal de contas se ainda sou rei
É que aí na terra tudo é tão real
E o povo canta o canto que eu cantei
Não importa o certo e o errado, o bem e o mal

Que vocês ainda possam me escutar
Através das minhas velhas gravações
É sinal que o mundo vai continuar
A viver de mitos, sonhos e paixões



Lanterna dos afogados

$
0
0


"A luz da 'Lanterna dos Afogados' brilha como um convite. Antônio Balduíno deixa o cais, levanta-se da areia que o acaricia e se dirige em grandes passadas para o botequim. A lâmpada de poucas velas mal ilumina a tabuleta que traz o desenho de uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros. Por cima uma estrela pintada com tinta vermelha, derrama sobre o corpo virgem da sereia uma luz clara que a torna misteriosa e difusa. Ela retira da água uma suicida. E por baixo o nome: 'LANTERNA DOS AFOGADOS'" (Jubiabá, Jorge Amado. p. 128).
No Brasil, distanciadas da mitologia grega, reforçada pela ideologia judaico-cristã, que transferiu à mulher apenas a monstruosidade calcada na figura da sereia, as sereias, porque ligadas à imagem de Iemanjá, que, por sua vez, sicretizou com Maria (cristã), guardam os mitemas da doçura, da possibilidade do desvio ao real duro, do colo, do mimo.
"Ateu e viu milagres", admirador e difusor das sabedorias africanas, fazendo de algumas de suas obras um território da complexificação do sincretismo religioso brasileiro, Jorge Amado empresta à sereia desenhada ("mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros") o enigma de ser aquela que salva o afogado. Obviamente, apenas pelo trecho citado, não podemos saber se a sereia guiará o afogado de volta à vida na terra, ou o arrastará para a vida no mar.


Seja como for, a sereia mimetiza o nome do lugar. Ela é a lanterna dos afogados, dentro de uma cultura - a dos pescadores - em que o homem se vê constantemente dividido entre o bem de terra e o bem de mar. Também, noutra perspectiva, ela é o botequim, a bebida que alivia e ajuda o homem a se desligar das dores da luta diária: a bebida como promotora de uma vida (mais real). E daí o afogar as mágoas nos braços da sereia.
Ela é o destino mais que perfeito para quem viveu do/no mar. Com seu canto impregnado de maresia e convites à libertação da dor, a sereia salva, mais do que mata, como comumente se prega. Ela é a "luz no túnel", o "cais de porto" "quando chega a noite / E você pode chorar", como canta o sujeito da canção "Lanterna dos afogados", de Herbert Vianna.
A conhecida canção ganha tons insondáveis quando o compositor a interpreta com Gal Costa (Gal Costa Acústico , 1997). A voz de Herbert entoa a primeira estrofe da canção até o refrão, quando diz: "Eu tô na Lanterna dos Afogados / Eu tô te esperando / Vê se não vai demorar". Só aí entra, sem demora, a voz de Gal como a sereia que responde (ajuda) ao apelo do sujeito da canção: "Uma noite longa / Pra uma vida curta / Mas já não me importa / Basta poder te ajudar". A lanterna dos afogados é também, agora, a voz (garganta acesa) da sereia-Gal.
Depois disso, depois de devidamente em sintonia com a tal Lanterna dos Afogados (o botequim, o espaço cancional criado pelas vozes e pelos instrumentos), os dois, as duas vozes se mesclam no canto dos versos indicando o cais em que cada um se transformou para o outro. É por isso que, sem dúvidas, esta versão de "Lanterna dos afogados" guarda um dos mais belos encontros entre forma e conteúdo. Ambos pertencem e são a Lanterna dos Afogados.
Ele canta já da Lanterna, evoca a musa, canta para que a sereia venha e salve a noite, a vida. Ela chega, e ao cantar, mais tarde, os mesmos versos que ele cantou, se conecta a ele. Ambos afogados e salvos um no outro, no canto, na voz do outro, parceiro na noite escura. Tal e qual a personagem de Jorge Amado que ouve a toada triste que vem do mar. "O Gordo está atento à canção dos marinheiros: - É bonito. - E você entende? - Não, mas me bole cá dentro..." (p. 129).
É isso, um bulir por dentro o que acontece com o sujeito cantado de "Lanterna dos afogados". E isso só é possível nesta versão em dueto, já que na versão com apenas uma voz não há o cais, compartilhamento, resposta à vida curta, mas apenas a angústia da ausência e do afogamento. Como na bonita e visceral versão de Cássia Eller (1994).
"E são tantas marcas / Que já fazem parte / Do que sou agora / Mas ainda sei me virar". Se o naufrágio já aconteceu, ou vai ou não acontecer, pouco importa. O sujeito será sempre a fratura entre o bem de terra - "lindas sirenas / morenas" - e o bem de mar - "uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros (...) o corpo virgem da sereia [envolta] em luz clara que a torna misteriosa e difusa". O sujeito da canção estará sempre à deriva.

***

 Lanterna dos afogados
(Herbert Vianna)

Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que sou agora
Mas ainda sei me virar

Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

A volta da Asa branca

$
0
0


"Chega! / Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. / Minha boca procura a 'Canção do exílio'. / Como era mesmo a 'Canção do exílio'? / Eu tão esquecido de minha terra... / Ai terra que tem palmeiras / onde canta o sabiá!". São com estes versos que Carlos Drummmond de Andrade fecha o poema "Europa, França e Bahia", poema cujo sujeito poemático, após parecer deslumbrar-se com as belezas sedutoras dos países civilizados, sente saudade e tem os "olhos brasileiros sonhando exotismos".
Para ele e diante dele, em gesto antropofágico, a torrer Eiffel é um imenso caranquejo; "submarinos inúteis retalham mares vencidos"; "a Itália explora conscienciosamente vulcões apagados"; e é das águas sujas do Sena que a sabedoria escorre. "Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa", afirma. Estranho a tudo e desentendido de tudo, ele quer lembrar a canção do exílio, aquela que canta os exotismos da [sua] terra e, por isso mesmo, faz o sujeito retornar à terra familiar e íntima.
Guardado no livro Alguma poesia, "Europa, França e Bahia" serve para complexificar a discussão da importância da tão temida "cor local". Tendo o seu uso mal compreendido, ou rejeitado veementemente, confundiu-se por muito tempo, a fim de inserir o Brasil na modernidade, cor local e exotismo. Para este segundo termo, não há melhor entendimento do que o dado por Caetano Veloso ao final da canção "Um índio": "aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos, não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio".
Como já sabemos, o exótico só é visto na perspectiva depreciativa do termo por aqueles que não alcançam a obviedade o objeto/sujeito sob o olhar. O outro, sempre diferente, é exótico. O lugar que desconheço e cuja gente age de modo "oposto" ao meu, é exótico. Sob a pecha de exótica, Carmen Miranda voltou os olhos do mundo para o Brasil. Pagou caro por isso, renegada pela elite pensante, mas sabia que o povo que ela representava tinha nela a esperança (espelho refratário) de distinção e de reconhecimento universal.
Portanto, como venho tentando defender aqui, se a canção popular brasileira é a tradução prática da gaia ciência pensada, noutro plano de interpretação, por Nietzsche, posto que heterogênea e permeável, ela o é porque se alimenta de matrizes múltiplas, de produções populares diversas e de cores locais singulares e amalgamáveis.
Na canção popular brasileira, entretenimento, informação e criação se misturam forjando a educação ético-estético-filosófico-sentimental do brasileiro. Desde sempre foi assim, misturas de misturas, até entre linguagens diferentes. Isso se opõe a uma certa e interessada imagem única e limpa - pós-Bossa Nova - que alguns teóricos tendem fazer do Brasil para o exterior, a fim de se fazer entender pelos seus pares.
Mas, como sabemos "o baião vem de baixo do barro do chão da pista onde se dança" e "ninguém me salva / ninguém me engana / eu sou alegre / eu sou contente / eu sou cigana / eu sou terrível / eu sou o samba". O entendimento e a compreensão da canção popular - forjada e alimentada nos extratos populares - escapam à tradução meramente socrática, academicista.
Focado na força da cultura popular da Grécia Antiga, e defensor da superioridade do popular, Nietzsche elabora e desenvolve novas modalidades de percepção da cultura, nas quais não entra o rancor daquilo que vem do povo. Pelo contrário, Nietzsche nos ajuda a repensar a estigma da ignorância dada à cultura popular pela lineariedade capitalista de subjetividades controladas.
É no sentido nietzschiano que Luiz Gonzaga é gênio, por aglutinar elementos espalhados na cultura popular que lhe forjou a obra, as canções - muitas de exílio. Um exemplo é que a musa Rosinha, condensação de várias mulheres sertanejas, serve à apropriação imagética de todo e qualquer sertanejo distante de sua mulher, por causa da seca do sertão "das muié séria / Dos homes trabaiador". "O mundo não vale nada / Sem amor de Rosinha / Por isso vivo a sonhar / Com a minha moreninha".
Gonzaga estetizou o sertão e moldou uma imagem do nordeste não apenas nas letras que cantava e no jeito de corpo (e vestimentas), mas, principalmente, na voz. É no timbre adequado, porque carregado de vivência, ao ritmo da sanfona onde mora a beleza do canto de Luiz preenchendo casas humildes, comuns, simples de alegria e esperança, matenedouras do homem na terra: "A seca fez eu desertar da minha terra / Mas felizmente Deus agora se alembrou".
É do luxo exuberante e óbvio do vivente-cantador da "festafeira no pino do sol a pino", cantador das tragédias do cotidiano, cordelistas da vida comum e fantástica, que a voz de Gonzaga se alimenta. A gestualidade vocal de Luiz Gonzaga figuratizava o "sertão é em todo lugar; o sertão é dentro de mim" rosiano. Posto que a voz de Gonzaga, seu modo de cantar e dizer, é a grande vereda dos sertões geográficos e íntimos. O que é "A volta da asa branca" senão uma fresta de luz no corpo ressequido do sertanejo? Um bálsamo sonoro na intemperância dos dias de muito sol e quase nenhuma água.
Foi deste recanto também que Haroldo Campos pinçou as estrelas, planetas, satélites de suas Galáxias. Se "(...) para / outros não existia aquela música não podia porque não podia popular", é esta música vinda do povo e cantada pelo povo que alimenta a vida do povo: injeta remédio e veneno na existência.Exótica, óbvia é esta canção que sustenta o indivíduo com saudade de sua terra que "tem palmeiras onde canta o sabiá". É ela que faz ele querer voltar e, de novo, tentar - ir indo: "A asa branca / Ouvindo o ronco do trovão / Já bateu asas / E voltou pro meu sertão / Ai, ai eu vou me embora / Vou cuidar da prantação". "Chega! / Meus olhos sertanejos se fecham saudosos".
Gilberto Gil (Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga, 2012) capta esta alegria do povo e da natureza natural inventada por Luiz Gonzaga ao cantar "A volta da asa branca" com acompanhamento festivo. Ele investe no sujeito que se enche de novas vontades: "(...) E se a safra / Não atrapaiá meus pranos / Que que há, o seu vigário / Vou casar no fim do ano".
Em entrevista à revista Bravo!(dez/2012), Gilberto Gil declarou: "Eu não existiria sem Gonzagão". Eu completaria que nem o sertão, nem o Nordeste, como os entendemos hoje, existiriam sem a voz de Gonzaga, sua agonia transvalorada em som. É ele o sabiá a sustentar memórias, crônicas e declarações de amor aqui na voz.

***

A volta da asa branca
(Zedantas / Luiz Gonzaga)

Já faz três noites
Que pro norte relampeia
A asa branca
Ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas
E voltou pro meu sertão
Ai, ai eu vou me embora
Vou cuidar da prantação

A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria
Dos homes trabaiador

Rios correndo
As cachoeira tão zoando
Terra moiada
Mato verde, que riqueza
E a asa branca
Tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre
Mais alegre a natureza

Sentindo a chuva
Eu me arrescordo de Rosinha
A linda flor
Do meu sertão pernambucano
E se a safra
Não atrapaiá meus pranos
Que que há, o seu vigário
Vou casar no fim do ano.

Canções velhas para embrulhar peixes

$
0
0


O título do livro do professor Roberto Schwarz - A sereia e o desconfiado - entrega a temática dos ensaios que investigam os mecanismos de seduções da arte, no caso, da Literatura. É da posição do desconfiado, qual o Ulisses amarrado no mastro, que Schwarz vai descobrindo para si, e revelando ao leitor, os elementos sirênicos da Literatura e, de viés, da cultura.
O que fica de mais positivo da leitura do livro do professor, cujo título foi o despertador de minha atenção, é o exercício do cruzamento de conhecimentos a fim de circular o objeto analisado. E isso revela muito do meu método de audição e apreensão de canções, do canto neosirênico. Muito embora o meu esforço seja sempre o de me colocar à deriva, solto no mar sonoro, mar sem fim. Procuro navegar muito mais ao lado da certeza da desconfiança, do que da desconfiança da certeza.
Petulância e inquietude acompanham o ouvinte-leitor de canção. A este não basta a mera paráfrase da letra, muito menos dizer com suas palavras aquilo que o cancionista "quis dizer" ao conceber a obra, haja vista estar trabalhando com um blend (mix) complexo de linguagens. O objetivo aqui é tentar entender aquilo que o sujeito cancional - esta entidade estética só apreciável no instante exato da execução da canção - canta. E isso só é possível sem cordas e sem ceras.
Obviamente não há um jeito certo, uma metodologia única e completa para tal empreendimento, daí a dificuldade e o estado de sempre naufrágio do ouvinte-leitor. E quando este, ao invés de usar a canção como exemplo (confirmações) para teses e teorias pré-concebidas, capta a teoria (singularidade, filosofia) contida na canção, o objetivo está cumprido. Mas como fazer isso, captar singularidades, diante do mar aberto e sem fim, da profusão de canções que cotidianamente nos chegam aos ouvidos? Eis o esforço: dobrar-se aos encantos das sereias e deles extrair vida, "esperança de saúde, embriaguez da convalescença", diria Nietzsche.
Creio ter sido movido por este estado-de-poesia que Odilon Redon (1840-1916) desenhou Femme à l'aigrette (ou, Sirène à l'aigrette), transcriando o poema "Un coup de dés", de Stéphane (Étienne) Mallarmé. Redon investiu nas primeiras palavras do poema. Cito aqui de modo linear, radicalmente oposto e cruel aos efeitos estéticos lançados por Mallarmé: "UM LANCE DE DADOS / JAMAIS / ABOLIRÁ O ACASO / MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS / ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO (...)".
Como sabemos, o poema "Um lance de dados" revolucionou a poesia. Nas palavras de Augusto de Campos, ele é a "base e fundamento da nova formulação poética". Vale a pena citar: "O 'lance de dados' mallarmeano instiga e precipita rumos inteiramente inéditos para a poesia. Rejeitando as esterilizantes formas fixas e o verso-livre (álibi para todas as acomodações), Mallarmé passa a organizar o espaço gráfico como campo de força natural do poema. Vale-se dos mais diversos recursos tipográficos, sempre num plano de funcionalidade, para criar numa constelação de relações  temáticas (que chama de 'subdivisões prismáticas da Ideia'). Com esse processo, pode-se dizer que Mallarmé, colocando 'em situação' a sua própria obra e a poética moderna, 'opera, através da poesia, a junção da música com a arquitetura visível'".
A sereia graciosa, e um tanto burguesa, haja vista a vestimenta, criada por Redon aponta a equalização em perspectiva enigmática entre som e sentido advindos do poema-letras-soltas-móbile no papel-mar mallermeano. Ela indicia o acaso. E "Todo Pensamento emite um Lance de Dados", encerra o poema. Não às respostas. Sim à irrespondibilidade.
O lance de dados é a travessia (um estado de coisas a outro) que a sereia representa. Apelo à intuição. As sereias têm dessas coisas. Elas são o acaso em ação. "O canto das sereias seria a indiferenciação entre o sujeito que narra e o sujeito narrado, entre a manifestação e a significação: canto sem diferenças, sob o qual se prometeria a pura perda de diferenças do silêncio, do ponto zero da descrição", anota David E. Wellbery em Neo-retórica e desconstrução (p. 195-196).
Mas para que servem as canções? Se, como sugerimos anteriormente, o sujeito cancional só se revela no instante em que a canção entra pelos ouvidos, para onde vai a canção quando finda a melodia? A canção serve para sustentar o ouvinte no mundo. Enquanto ela dura, o ouvinte pensa ter o mundo nas mãos, ao final, ele amanhece mortal.
As canções envelhecem? Diante dos artifícios de eterno presente criado por elas, aliados às técnicas de armazenamento e reprodução, podíamos dizer que não, as canções não envelhecem. Mas aí Peri Pane complexifica a questão e cria uma canção cujo título – “Canções velhas para embrulhar peixes” associa a função da canção à função do jornal, abre brechas à temporalidade (validade) da canção.
Ora, se tal e qual o jornal, cronística, informativa (daquilo que sabemos, mas que precisa ser revelado por fora), a canção nos situa no instante do cotidiano, ela envelhece na medida em que cumpre seu papel de revelação do ouvinte ao ouvinte. No entanto, sendo este ouvinte propício às circularidades da ilusão necessária a todo indivíduo, a "mesma" canção retornará mais adiante. Em diferença.
Ou seja, a canção envelhece sem envelhecer de todo, pelo menos não como objetivamente entendemos o envelhecimento. Como diz a letra de Peri Pane, a canção fica velha quando "embrulha peixes". Tal e qual o jornal de ontem: serviu à leitura das informações e agora pode ser descartada, serve de outro modo, envolvendo peixes mortos, lembranças que devem ser "varridas pra debaixo dos tapetes".
Se pensarmos de modo macro, podemos inferir sobre a profusão de canções que são lançadas e rapidamente, logo após rápido sucesso e furdúncio entre os indivíduos, somem: "antes confetes, serpentinas / Hoje embalam as traças entre as naftalinas", como canta o sujeito da canção (Canções velhas para embrulhar peixes, 2012).
"Canções no escuro de hds, gavetas / Versos calados, surdos, cegos de muletas / Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas / A espera laça os futuros escafandristas", completa o sujeito, evocando não apenas a descartabilidade das canções e, consequentemente, das histórias que cada canção carrega, mas também dos indivíduos.
Sintomaticamente, a capa artesanal do disco é ilustrada por uma sereia criada pelo artista plástico Rafael Gentile, a partir da técnica do estêncil. Altiva, cabelos soltos, a sereia aparece solta no ar, no mar, intimidando o ouvinte. Frágeis como os indivíduos, as canções envelhecem com estes, dentro destes, recrudescem: juntos frente aos apelos da sereia, do acaso, no lance de dados. Canções à espera não de futuros amantes, mas de futuros escafandristas.

***

Canções velhas para embrulhar peixes
(Peri Pane)

Canções velhas para embrulhar peixes
Doidas varridas pra debaixo dos tapetes

Canções antes confetes, serpentinas
Hoje embalam as traças entre as naftalinas

Canções no escuro de hds, gavetas
Versos calados, surdos, cegos de muletas

Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas
A espera laça os futuros escafandristas
Viewing all 280 articles
Browse latest View live